Portugal é o pior país neste indicador. Capacidade de compra da classe média diminuiu. Especialista propõe contingentes para alojamento local e IMI agravado para imóveis vazios.
Corpo do artigo
Os preços das casas cresceram 31% mais do que os rendimentos entre 2015 e 2020. Portugal teve mesmo a pior evolução da OCDE. O "boom" turístico dos últimos anos levou a que classe média se afastasse dos grandes centros. Um médico, por exemplo, precisa de 84 salários líquidos para pagar ao banco 90% do valor médio de 110 metros quadrados em Lisboa, sendo que os peritos apontam para 30 ordenados como sendo o limite aconselhável.
"É insustentável continuarmos a ter um parque habitacional inacessível para os trabalhadores dos centros das cidades. Os contingentes para o alojamento local (AL) devem impedir isso. Poder-se-ia criar um regime em que, de cinco em cinco anos, seriam sorteados proprietários com direito a explorar AL, mas esse direito seria rotativo", sugere Ana Drago, investigadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
Outro problema resulta de um estreito mercado do arrendamento. A vantagem da compra de casa sobre a opção do arrendamento cresceu 38% entre 2015 e 2020. Portugal é o quarto pior país da OCDE neste indicador. "Tem de haver incentivos ao arrendamento, regulação sem congelamento e, ao mesmo tempo, penalização fiscal dos alojamentos vazios através do IMI. Há imóveis parados porque ninguém paga aqueles preços. Resultam de um investimento de longo prazo. Tem de haver mais programas de apoio como o 1.o ºDireito e o do Arrendamento Acessível", afirma.
Diferenças regionais
Os preços das casas aumentaram 10% em 2020 face ao ano anterior. Os agravamentos chegaram aos 13% na Área Metropolitana do Porto (AMP) e a 12% na zona da capital. No entanto, o preço por metro quadrado na Área Metropolitana de Lisboa é 31% superior ao praticado na AMP. O Algarve encima o ranking, com preços 49% acima da média nacional.
Os estrangeiros também inflacionaram os preços, tanto os que vêm em turismo como aqueles que ficam no país por razões profissionais. "Temos de acabar com os benefícios fiscais a trabalhadores residentes não habituais. Ganhar cinco ou seis mil euros mensais e pagar IRS de 20% leva estes profissionais a comprar habitações de preço elevado. Eu já perdi a conta aos novos condomínios fechados em Lisboa", refere Ana Drago.
"O preço da habitação tem crescido mais para a classe média. No caso dos elementos com maior rendimento, essa inflação não os prejudica tanto. Já no caso da classe média-média e média-baixa, há dificuldades. Temos de fazer notar o aumento da precariedade entre os jovens", analisa a investigadora. "As novas gerações de classe média, jovens em início de carreira profissional, confrontam-se com o bloqueio à estabilidade matrimonial e familiar devido à especulação imobiliária", sublinha Elísio Estanque, professor da Faculdade de Economia de Coimbra.
"O acesso à habitação é muito desigual, mesmo num contexto de baixas taxas de juro, e, por outro lado, é algo que deixou de ser um ponto de união e igualdade dentro da classe média. A bonificação dos juros no crédito [regime extinto em 2002] para compra de casa permitia esse acesso igual", faz notar Ana Drago.
Estagnação dos salários foi choque para a classe média
Há um conflito dentro da classe média entre os assalariados que não conseguem comprar aos preços atuais imóveis nos centros das cidades e aqueles que, sendo portugueses ou estrangeiros, são capazes de investir?
Há realmente uma segmentação no seio da chamada classe média, tal como há entre os novos e os velhos da força de trabalho. A questão do arrendamento liga-se diretamente à indústria do turismo. O sistema de alugueres, seja a nível informal, seja por via das Airbnb e afins, dá suporte a alguns setores proprietários e até populares nas regiões mais turísticas, mas muitas vezes no plano da economia paralela. As novas gerações de classe média, jovens em início de carreira profissional, confrontam-se com o bloqueio à estabilidade matrimonial e familiar devido à especulação imobiliária. Creio que a legislação e as políticas habitacionais dirigidas à juventude podem ser decisivas para a preservação do equilíbrio e alguma autenticidade no espaço urbano.
A falta de um mercado de arrendamento competitivo face aos preços da compra por via do crédito bancário agrava a antiga unidade da classe média?
Há, de facto, aqui uma linha divisória que tende a acentuar-se e que ameaça a estabilidade da classe média na passagem intergeracional. E isto pode refletir-se na própria demografia (quebra das taxas de natalidade) e na coesão da sociedade. Precisamos de uma política de habitação dirigida aos jovens e que se conjugue com políticas urbanas de preservação das tradições, o que significa uma regulação mais efetiva que trave a especulação e a descaracterização das comunidades de bairro, onde reside a autenticidade identitária das cidades históricas. O património edificado e o mercado turístico não podem desligar-se do património humano e cultural.
O descontentamento de algumas classes médias dirige-se contra as elites e a classe política?
Eu entendo que está em curso uma recomposição da classe média portuguesa por força da reconversão do mercado de trabalho, na administração pública e no setor privado. E isso reflete-se nos comportamentos e nas atitudes. Por um lado, a estagnação dos salários ao longo das duas últimas décadas, agravada pelo ciclo de crise de há dez anos, traduziu-se num choque para a classe média portuguesa, larga parte dela dependente do Estado social. Disparou então o endividamento e a pobreza bateu à porta de muitas famílias. Este setores da "velha" classe média não chegaram a recuperar plenamente a estabilidade que tinham até 2010. Enquanto as suas expectativas (subjetividades) continuaram a subir, a sua situação real decaiu, fazendo disparar a frustração e a crispação social desses setores. Por outro lado, os novos segmentos qualificados (e mais jovens), que têm beneficiado com a revolução tecnológica e a digitalização, podem constituir as bases de uma futura classe média empreendedora, mas esta não é ainda suficiente para se oferecer como a "mola" de um novo modelo de referência para estimular a "mobilidade social" e a "meritocracia".
Arrendou um T1 em Guimarães pelo preço do quarto onde vivia no Porto
Em outubro de 2020, José Vieira foi viver para o Porto, mais perto do trabalho e dos amigos, mas tudo o que conseguiu, "com condições mínimas", foi "um quarto com casa de banho por 420 euros por mês", na zona da Constituição, num T5 com mais quatro pessoas. Não aguentou muito tempo: em janeiro, arrendou um exíguo e antigo T1 por mais cinco euros, mas a mais de 50 quilómetros de distância, em Guimarães. Ainda assim, "caro, para as condições" que oferece, apesar de ter maior independência.
Designer de 22 anos em início de carreira, não tem como pagar os "preços absurdos que se estão a praticar" no mercado de arrendamento do Porto e arredores. "As rendas de um T0 no Porto rondam os 500, 600 euros. Estão exorbitantes, descomunalmente altas", condena o jovem, desanimado com a "falta de opções".
"Considero que as pessoas da minha geração e da geração acima da minha são nómadas. Andam num "loop" de troca de casa ou de quarto, do Porto para Guimarães, para Gaia. Sempre à procura de casas mais baratas. É um ziguezague para encontrar a melhor solução e ter uma vida mais independente", lamenta, lembrando que o ordenado, um pouco acima do mínimo, apenas lhe chega para pagar as despesas. "Tenho colegas entre os 27 e os 35 anos que ainda estão a dividir casa. É frustrante. Não temos opção porque as rendas não o permitem e porque o Governo, a nível salarial, não o permite", aponta.
Para José, a renda de 425 euros ainda "é cara", pelo que continua à procura de um imóvel "mais barato". "É descomunal que, em 2021, em plena pandemia, os preços sejam estes, quando há tantos jovens desempregados e outros a ganhar o salário mínimo", critica o jovem, natural do Marco de Canaveses, onde refere haver casas mais baratas. Texto: Ana Correia Costa