Quando a vida de todos mudou, a de Manuel não: continuou a cuidar de Angélica
Há três anos com demência, Angélica Bandeira não anda, pouco diz e nada parece recordar. O marido, Manuel, é o seu cuidador e a vida, feita em casa, não mudou por causa da pandemia.
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Respira. Respira. Respira. A palavra repetida sai-lhe como um sopro distraído. Foi a última que ouviu, a única que fixou mesmo que por instantes. A terapeuta das quintas-feiras, Margarida, assim lho pediu: "Respire". Enquanto exigia mais da perna direta de Angélica Bandeira, 76 anos, do que a perna queria dar. A sessão de fitoterapia dura uma hora. Frente a frente, Angélica numa cadeira de rodas mede forças com Margarida numa cadeira da mesa de jantar da sala de Angélica e do marido, Manuel, no primeiro andar de um prédio com lote desordenado nas Olaias, Lisboa.
"Às vezes, nem sequer dá para perceber muito bem como é que ela está, porque nunca se queixa. Só pela respiração", desabafa Margarida. Angélica desvia a atenção e segue com os olhos o marido. Se se recorda do dia do casamento - ela de cabelo curto e com um vestido moderno com padrão em ziguezague - ninguém sabe. O mesmo ponto de interrogação paira sobre o dia em que Manuel Bandeira, 73 anos, a foi convidar aos Correios da Graça, onde Angélica era chefe de divisão, para ir ver, pela primeira vez, as festas de Santo António.
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Maria Angélica tem, há três anos, uma demência, que começou com uma depressão. Hoje já pouco ou nada diz. Limita-se a repetir o que a memória consegue fotografar: a última palavra de uma conversa durante uma tarde ou uma hora. Também já não se mexe muito sem ajuda. Quem a auxilia é o marido, que está por sua conta, com exceção feita ao apoio que recebe de uma equipa domiciliária da Santa Casa da Misericórdia, que faz a higiene de Angélica de manhã e à tarde, e de uma senhora que lhes limpa a casa, uma vez por semana, altura em que Manuel aproveita para ir ao supermercado.
É ele lhe prepara o Nestum com mel por volta das 10 horas, depois de ir tomar o seu pequeno-almoço ao café "lá a baixo" e comprar o jornal, é ele que a levanta, lhe dá de comer, lava a loiça, conversa com ela, estende a roupa. E se for preciso é ele que a limpa. "Felizmente, eu não tenho pejo nenhum em relação à minha mulher, em relação a qualquer coisa que ela faça. Se fizer xixi no chão, eu aponho", diz prontamente.
É uma missão a tempo inteiro, 24 sob 24 horas, todos os dias da semana. Não há férias ou dias santos. "Eu nunca saio daqui", explica Manuel, o senhor Bandeira, como era tratado quando trabalhava como técnico na Televisão de Macau. Vai fazendo prova do tempo em casa, ao longo da tarde, recintando o horário de todos os autocarros da Carris que passam na rua. Sabe até quanto tempo ali se demora cada um.
Confinamento não é uma palavra que tenha aprendido com a pandemia. Conhece-a bem de perto. Tem passado os últimos anos em casa, a cuidar da mulher. Mesmo durante o estado de emergência, fez "sempre a mesma coisa". Só o pequeno-almoço teve de passar a tomar em casa também, mas ia na mesma buscar o jornal. "Para além da desgraça em si, a pandemia não me afetou", continua. Se o modo de vida mudou, esqueceram-se de o avisar. Para entrar no café ou no supermercado só de máscara, mas pouco sai à rua. Pouco saía antes.
"Se é um sacrifício é um sacrifício físico, porque eu tenho um problema na coluna lombar que arranjei depois de ela ter esta doença", conta. Mas a vontade de continuar a ajudar Angélica sobrepõem-se e tem "resistência à dor". Alentejano de Aljustrel, Manuel veio cedo para Lisboa, fez a tropa, trabalhou na fábrica de madeiras do pai de um colega da tropa, foi para um hotel em Aveiro. Andou pela Bélgica e por Macau.
Conheceu Angélica no posto de correios da Graça - onde a convidou para o Santo António. Costumava ser atendido por ela quando ia ali buscar o envelope com dinheiro que a mãe lhe enviava do Alentejo para ajudar com as despesas ainda estava no quartel. Angélica também era alentejana, mas do Alto Alentejo, veio viver para Lisboa com a irmã.
No primeiro encontro receberam a bênção do santo casamenteiro e do pai da noiva. Casaram-se em 1975. "Ela foi a vida toda boa para quem conhecia e para quem não conhecia", recorda Manuel, a esforçar-se para retribuir. Não perde tempo a pensar se ser cuidador informal é o seu trabalho, um dever, uma boa ação. Faz o que está ao seu alcance. Há medida que Angélica começou a ficar mais absorvida pelo seu mundo e menos pelo dele, percebeu que precisava de aprender a lidar com a nova faceta da mulher. Frequentou uma formação para cuidadores da Santa Casa onde ouviu as experiências de outras pessoas, ensinaram-no a alimentar Angélica mesmo quando esta se recusa a comer e a levantá-la da cama.
"Eu vejo a Angélica como a vi sempre, só que agora não anda. O facto de ela estar assim não vai fazer com que eu me deixe ir pelo cano abaixo. Eu tenho é de ter forças para estar sempre ao pé dela e estar disponível para a ajudar, sempre que ela precisar", assume Manuel Bandeira. "Ela levantava-se às 6:00 e deixava a casa impecavelmente limpa. À noite quando vinha do trabalho fazia o resto, ainda vinha passar a ferro", recorda. Agora o papel inverteu-se. As tarefas domésticas são da sua responsabilidade, é ele que explica como se apanha roupa do estendal de forma a ser mais fácil de passar. E ela acompanha-o, em silêncio.