Um velho provérbio chinês faz o favor de nos lembrar o que, sendo óbvio, nos escapa tantas vezes:<em> "Quando as raízes são profundas, não há razão para temer o vento"</em>. A família é (também) isto: uma construção paulatina, cujas raízes ganham força suficiente para fazer frente as mais duras intempéries. O bulício dos dias atrapalha? Verdade. Ganham, por isso, mais relevo os momentos em que lhe conseguimos escapar. A Beira Baixa é o território certo para uma escapadinha familiar. Quer ver porquê?
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PRIMEIRO DIA
A belíssima aldeia de Monsanto, em Idanha-a-Nova, dona de dois invejáveis títulos (a Aldeia Mais Portuguesa de Portugal e Aldeia Histórica), é um buquê: junta beleza e história, aventura e passeio, mistério e revelação. Ícone turístico da Beira Baixa, é, na verdade, uma experiência peculiar que não deixa ninguém indiferente.
Alcandorada num cabeço que permite vislumbra vários horizontes, a povoação irrompe abruptamente na campina de Idanha, erguendo-se até aos 758 metros, no seu ponto mais alto. Estamos num local muito antigo, com presença humana desde o Paleolítico (no sopé do monte há vestígios arqueológicos que apontam para um castro lusitano e para ocupação romana). Eis, portanto, a primeira de muitas possibilidades que o passeio oferece: uma lição de história.
Apenas dois exemplos. O Castelo (visita obrigatória) leva-nos até ao séc. XII, altura em que, após a reconquista da linha do Tejo, coube à Ordem do Templo o esforço da sua defesa. Monsanto foi um dos primeiros lugares fortificados, a partir de um anterior castelo muçulmano. Data também do séc. XII a construção da Capela de S. Miguel (outra visita obrigatória): em torno dela nasceu o núcleo de colonização medieval de Monsanto.
Rocha, rocha e rocha
Segunda cumulativa e inescapável possibilidade: passear por entre os rochedos que marcam - e de que forma! - a morfologia da aldeia. Os barrocais de Monsanto, resultado de um combate de milhões de anos entre o granito e os elementos naturais, são gigantes e impressionantes, estão por todo o lado, entram pelas casas, são a alma da povoação. Há coisas que só costumamos ver em filmes com efeitos especiais, mas que aqui são tocáveis, como os Penedos Juntos: dois pares de grandes rochas que se soltaram e aqui se fixaram, num estável equilíbrio. A justaposição dos blocos forma, na base, uma abertura que permite o seu atravessamento, formando um abrigo. Incrível.
Terceira hipótese: repare no n.º 14 da rua de St.º António. A caveira sobre duas tíbias cruzadas diz-nos que esta era a Casa do Carrasco, habitada pelos que executavam as penas de morte. Há uma série de iconografia que permite perceber os tempos de antanho. Ou os mais contemporâneos. Aqui viveu o escritor e médico Fernando Namora e por aqui andou Zeca Afonso (há casas com os seus nomes). Aqui assomou José Saramago, que sobre Monsanto escreveu esta verdade: "De pedras julgava o viajante ter visto tudo. Não o diga quem nunca veio a Monsanto".
Sai-se daqui com saudades. Que só serão atenuadas quando chegarmos ao próximo destino. Antes, porém, é tempo de parar um pouco e provar algumas das tantas especialidades gastronómicas beirãs. Navegue aqui.
Há 600 milhões de anos
Era uma vez uma povoação neolítica que decidiu assentar arraiais nas encostas da serra de Penha Garcia (Idanha-a-Nova). Os lusitanos, primeiro, e os romanos, depois, ocupariam o território, por duas razões: a posição privilegia a defesa contra potenciais invasores e, não menos importante, havia ouro por explorar no leito do rio Pônsul. Subir às imponentes muralhas, depois de galgados 111 degraus, é exercício obrigatório: dali vislumbram-se as águas calmas da barragem que se mostra, mas, sobretudo, dali mira-se um portento com 600 milhões de anos. Já lá iremos, não sem antes tocarmos as pedras que guardam uma lenda.
Diz-se que aqui vagueia o fantasma do antigo alcaide do Castelo, D. Garcia. Terá o senhor raptado a filha do governador de Monsanto, D. Branca. Para mal dos seus pecados, D. Garcia foi capturado e condenado à morte. Ter-lhe-ão valido os chorosos apelos da amada. Ganhou a misericórdia e a D. Garcia a pena foi reduzida: cortaram-lhe "apenas" um braço, o que lhe deu para sempre o cognome "O Decepado".
Tesouro sem preço
Se algum cognome fosse aposto a Penha Garcia, haveria de ser "A Incrível". A natureza deixou aqui um tesouro sem preço: nas rochas quartzíticas estão guardados fósseis de organismos invertebrados que bailavam, há 480 milhões de anos, nos substratos de areia e argila. Estávamos no tempo em que todos os continentes se uniam em torno do Pólo Sul, isto é, em que os rochedos imensos que hoje podemos ver e tocar eram nada. Aos fósseis os mais antigos insistem chamar-lhes "cobras pintadas". Os cientistas tratam-nos por icnofósseis.
O caminho até lá faz-se pelos trilhos empedrados desenhados pelos animais que levavam a farinha até aos moinhos, que continuam bem preservados. Vale tudo, mas mesmo tudo, a pena. Aqui, a pegada do homem e da natureza confronta-nos: somos pequeninos num lugar de tamanha grandeza.
Como se isso não bastasse, há, ainda, um oásis no meio das fragas: uma queda de água enche a piscina natural da Zona de Lazer do Pêgo, onde nos podemos relaxar , antes e/ou depois de lancharmos com a família.
Assim de repente, é difícil achar modo mais fantástico de terminar o dia.
Antes de arrancar para o seguinte, procure aqui alternativas para jantar e dormir.
SEGUNDO DIA
Desengane-se se acha que o primeiro dia em família foi imbatível. Quando chegar às Portas de Ródão (Vila Velha de Ródão) perceberá facilmente que, no território da Beira Baixa, há espanto atrás de espanto.
Está tudo mudo e parado (à exceção do Tejo que corre célere). Como diria Manuel Torga, "apenas se move e se faz ouvir o coração no peito, a anunciar o começo de uma grande hora". Do barco de recreio que nos levará num passeio matinal para lá das Portas entrevê-se, ao longe, uma garganta gigante rasgada ao longo de tempos longos pela indomável força da água. Lá chegados, lá parados, a comunidade de grifos que habita e nidifica nos rochedos esvoaça em jeito de boas-vindas. É tempo de simplesmente calar, para sorver todos os sons que nos envolvem.
No leito do rio repousa o Complexo de Arte Rupestre do Vale do Tejo, em cujas margens foram descobertos vestígios pré-históricos de enorme relevância.
Digerido o belo, a bordo pode - e deve - digerir-se, em jeito de prova (e moderadamente, porque há caminho a fazer), os produtos destas "Terras de Oiro": azeite, mel, doçaria, presunto e queijo, tudo acompanhado por um dos emergentes e copiosos vinhos da região.
A "aldeia-fortaleza"
É tempo de conhecer uma das quatro aldeias de xisto desta sub-região. Tem nome de árvore, mas é a pedra que manda em Figueira (Proença-a-Nova). O xisto impõe-se nas ruelas que guardam o traço genuíno da povoação cujo núcleo mais antigo permanece quase todo em estado bruto.
Há várias e deliciosas particularidades em Figueira. Chamam-lhe "aldeia fechada", ou "aldeia-fortaleza". Motivo: quando a noite caia, as pequenas portas de madeira fechavam-se, para evitar que os lobos entrassem no povoado. Os lobos já não assomam à aldeia, mas as cancelas foram recuperadas.
Há um forno comunitário que preserva o sistema de agendamento: uma tábua com 33 furos, cada um dos quais correspondia a uma família. A marcação era feita com um pequeno pau: quem chegasse primeiro, primeiro se despachava.
Hoje, ainda se coze pão todos os dias. D. Justina anda apressada: a hora do almoço no restaurante Casa Ti"Augusta já não está longe - e é preciso estugar o passo para que o pão acompanhe os pratos típicos da região que ali se servem: feijoada beirã, cabrito assado, plangaio, entre outros. É boa altura para se "atirar" a uma das iguarias, não é?
Se quiser ir andando para o próximo destino, veja aqui as alternativas.
Terminar com beleza
Em Oleiros, os Passadiços do Orvalho proporcionam um passeio carregado de paisagens esmagadoras, mesmo a jeito para amenizar o peso das calorias do repasto. O desenho cuidado das estruturas em madeira permite uma impecável simbiose entre o que a natureza nos oferece e os efeitos da mão humana.
São nove os quilómetros que temos pela frente. Mas, atenção, só dois têm passadiços. A opção passou por construí-los em pontos fulcrais da chamada GeoRota do Orvalho, de forma a tornar viável a passagem por zonas de trilho um pouquinho mais exigentes, permitindo, assim, o acesso aos locais naturais únicos existentes ao longo do percurso.
De entre os geomonumentos classificados pela UNESCO, destacam-se o Cabeço do Mosqueiro (local ideal para um lanche retemperador, a 660 metros de altitude e com uma paisagem de cortar a respiração) e a Cascata da Fraga de Água D"Alta (50 metros de desnível vencidos por uma sucessão de três véus de água que podem ser observados a partir do miradouro situado por cima da cascata, na Cabeça Murada, ou, melhor ainda, vistos de perto, tocando a água límpida e fresca que se insinua, ali junto aos nossos pés).
Se há experiências, mais arrojadas ou mais sossegadas, para fazer nesta escapadinha em família? Claro que sim. Basta espreitar aqui.
Volte sempre.