Sobre a urgência de nos movermos pelo acaso, uns com os outros. Assim nasce o melhor de uma viagem, assim pode nascer o melhor de uma vida
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Sonho, uma vez por semana ou mais, desligar o telemóvel de vez e deixar esfumar-se, negligentemente, tudo o que ele contém. Não é prático, sobretudo não é realista nem justificável. Mas, lá está, é um sonho.
Gosto de viajar, 80 ou 80 mil quilómetros, tanto faz. E a viagem em si é tão, ou quase tão, importante como o destino. A viagem nunca é tempo perdido, a pé ou de bicicleta ou de carro ou de comboio ou de autocarro ou de barco ou de avião, sozinho ou acompanhado.
Acerto uma lista mental de viagens feitas na era do telemóvel (últimos 30 anos, mais coisa menos coisa) e em todas o aparelho, fosse ou seja um pequeno tijolo, um flip ou um smart, cumpre papéis entre o secundaríssimo e o inexistente – salvo quando alguém, algures no lugar em que aterrámos, já decretou que uma função básica do quotidiano só vai lá com uma aplicação. Nesse caso, embora arrastando metaforicamente os pés, está tudo bem.
Lembro-me, sim, sem pestanejar, das muitas vezes que o mais grato de uma viagem se deveu ao de boca em boca, ao acaso palpável, à generosa partilha de conhecimento de quem já por ali andara, do artigo ou do livro que plantou na cabeça uma semente de curiosidade acerca de uma praia, uma praça, um café. Tudo mais ou menos planeado - geralmente, menos.
Enumero. A loja de memórias do cinema numa esquina do Soho, Londres, em cuja cave se alinhavam milhares de velhos jornais e revistas de muitas latitudes, bem acondicionados em plástico e a preços suportáveis, escadas íngremes, um cheiro a papel vivido que não é de gosto alargado, um paraíso para nerds como eu. O melhor restaurante mexicano de sempre numa avenida em La Manga, esplanada fresca, que se materializa à nossa frente após dezenas de quilómetros a pedalar sob um sol insensato. O melhor restaurante vegetariano de sempre num dia gélido de fevereiro em Estocolmo - hora de almoço, do outro lado da rua uma Pizza Hut, a escolha fez-se sozinha (mas quem é que atravessa a Europa para comer na Pizza Hut, qualidades e defeitos à parte?). O melhor peixe frito e a melhor zorza de sempre (sim, é um padrão) no único estabelecimento no centro de Finisterra, Costa da Morte, a desenrascar refeições quentes na tarde de 11 de setembro de 2001. O vale que se desenrola, em silêncio e quase impercetível, sob o verde de Afife, e que cá de cima, entre caminhos estreitos ladeados de muros baixos, parece terminar apenas na areia da praia, ignorando a N13. A subida desde o Parque Cerdeira até ao monte mais escuro e mais à mão, noite de verão, para ficar tonto com o manto de astros lá em cima.
Cismo: este tempo todo, onde estava o telemóvel? Não estava. Movemo-nos por duas de letra e puro acaso.