O maior e mais importante conjunto de pintura mural do século XX em Portugal, assinado por Almada Negreiros, está agora recuperado num centro interpretativo em Alcântara e Santos.
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Lá vem a Nau Catrineta que tem muito que contar”, lê-se, à laia de título, na parte superior dos três painéis inspirados num poema popular recolhido e publicado por Almeida Garrett no século XIX. A história, ilustrada por José de Almada Negreiros numa das paredes do salão superior da Gare Marítima de Alcântara, fala de uma nau quinhentista cuja tripulação não tem o que comer, e das desventuras do seu capitão cercado pela morte. O tom trágico-cómico e a adaptação das cenas aos anos 1940 causaram desconforto nos encomendadores, mas não foram caso único.
Ao invés de pintar os heróis que o Estado Novo defendia, Almada Negreiros pintou cenas da mitologia nacional, de raiz popular, e um retrato da vida árdua na Lisboa ribeirinha da época, visíveis também no tríptico “Quem não viu Lisboa não viu coisa boa” - que homenageia as mulheres carvoeiras - e no painel isolado “Ó terra onde eu nasci”. Na outra parede do salão, aborda-se D. Fuas Roupinho, personagem mítico-histórico e 1.º Almirante da Esquadra do Tejo de D. Afonso Henriques, apesar de metade da obra mostrar o trabalho braçal dos pescadores.
Tanto estes murais, terminados dois anos após a gare entrar em funcionamento, em 1945, como os da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos, de 1949, causaram desconforto junto dos encomendadores da obra, já que nem as imagens, nem o tom se alinhavam com a narrativa do regime, e retratos de estratos sociais baixos nunca se coadunariam com um sítio pensado para “receber passageiros das primeira e segunda classes”, nota António Melo, técnico do serviço educativo do Centro Interpretativo Murais de Almada Negreiros nas gares marítimas.
Na sala Diz que Disse - um dos nove espaços que contextualizam a obra de Almada no período da construção das gares, projetadas pelo arquiteto Porfírio Pardal Monteiro - vem a lume que os murais, sobretudo os da Rocha do Conde de Óbidos, estiveram em perigo de serem destruídos, tendo os movimentos em defesa deles sido decisivos para que chegassem até hoje. Nestes dois trípticos que adornam o salão nobre no primeiro piso, nota-se que o vulto modernista foi mais longe: geometrizou as figuras, com cores sólidas, e conjugou o “cubismo e artes gráficas”.
Em “Partida dos emigrantes”, a placa informativa descreve “partidas consternadas” perante um embarque forçado, de quem procura melhores condições de vida; e em “Domingo lisboeta”, há três painéis independentes com uma família, dois pescadores e um grupo de saltimbancos com um pequeno barco por baixo de cada um. O restauro foi financiado através da World Monuments Fund, organização sem fins-lucrativos que opera em todo o Mundo em prol da salvaguarda de património cultural insubstituível, como são os murais do modernista português.
A origem das duas gares
Projetadas para dar resposta à falta de condições para acolher os passageiros que chegassem a Lisboa por via marítima em navios de grande calado, as gares começaram a ser pensadas na década de 1930, mas só foram inauguradas em 1943 e 1948, falhando a data da Exposição do Mundo Português, em 1940. O ministro das Obras Públicas, José Duarte Pacheco, convidara o arquiteto Porfírio Pardal Monteiro para desenhar as gares, que viriam a ser embelezadas, como elegante porta de entrada na capital, pelo artista modernista Almada Negreiros. Nelas funcionaram serviços gerais, receção de bagagens e, em cima, hall de embarque da primeira e segunda classes, com alfândega, correios, agências de turismo, câmbios e venda de lembranças.
Passagens, partidas e chegadas
Nas salas Passagens, Partidas e Chegadas percebe-se que importantes períodos históricos do país perpassaram tanto a Gare Marítima de Alcântara, como a da Rocha do Conde de Óbidos. Ao longo de várias décadas, estes locais viram chegar os refugiados da Alemanha nazi e da Itália fascista, sobretudo judeus, minorias étnicas e elites de vanguarda, durante a II Guerra Mundial; assistiram à emigração que se lhe seguiu; à partida dos contingentes militares para combater os movimentos anticolonialistas em África; e a subsequente descolonização e o regresso dos portugueses “retornados” das ex-colónias, sobretudo após o 25 de Abril de 1974.
Entre as gares, de carro elétrico
A bilheteira do Centro Interpretativo Murais de Almada Negreiros nas Gares Marítimas permite a qualquer interessado adquirir uma entrada combinada entre museu e gares, ou então apenas para os murais de ambas as gares, ou ainda exclusivamente para o centro interpretativo. Entre Alcântara e Rocha do Conde de Óbidos, em Santos, distam 800 metros em linha reta, que podem ser confortavelmente abreviados num shuttle, disponível mediante disponibilidade. Este veículo, totalmente aberto, é elétrico e destaca-se pelo design inspirado no projeto original do carrinho de bagagens concebido pelo ateliê de Pardal Monteiro. As visitas podem ser guiadas.
Centro Interpretativo Murais de Almada nas Gares Marítimas
Gare Marítima de Alcântara, Doca de Alcântara, Lisboa
Tel.: 915 550 496
Web: muraisalmadagaresmaritimas.pt
Das 10h às 19h. Não encerra (exceto 25 de dezembro)
Entrada (centro e gares): 5 euros/adulto; crianças dos 6 aos 15, 2,50 euros; séniores, 3,50 euros