A proposta do Governo para a revisão dos estatutos de 12 ordens profissionais deu entrada no Parlamento na segunda-feira. Várias destas associações acusam o Executivo de "ingerência" e a Ordem dos Advogados alega que estão a ser retiradas competências à profissão que representa. O JN faz um resumo do que está em causa.
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O que quer o Governo?
Na segunda-feira, em conferência de imprensa, a ministra dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, elencou alguns dos objetivos das alterações propostas, que, ao que o JN apurou, serão votadas, no Parlamento, a 20 ou 21 de julho. Eis os principais:
Eliminar as barreiras no acesso à profissão
O Governo quer evitar que a capacidade económica não seja um fator de exclusão dos candidatos. Assim, a proposta prevê que quem tenha dificuldades financeiras "possa ser isento do pagamento de taxas" ou vê-las reduzidas. "Ninguém, pela sua condição socio-económica, pode ficar arredado da possibilidade de exercer a sua profissão", argumentou a ministra.
Acabar com a dupla certificação
O Executivo quer restringir ou eliminar "muitas das provas" que os candidatos têm de fazer para ingressar na profissão. Trata-se, no entender de Ana Catarina Mendes, de "remover barreiras" que se prendam com a "dupla certificação das qualificações que já foram adquiridas". Ou seja: se alguém concluiu uma licenciatura, deve ver essa qualificação reconhecida, cabendo às ordens não "obstaculizar" a entrada na profissão através do recurso à exigência de exames.
Combate à precariedade
"Hoje, um jovem licenciado que é estagiário não beneficia de remuneração por esse estatuto", frisou a governante. Por isso, "passa a ser obrigatória a remuneração do estágio, que nunca poderá ser inferior a 950 euros", anunciou.
Mais transparência
É um dos pontos mais polémicos. Alegando que as ordens devem tornar-se mais transparentes, o Governo quer criar dois novos órgãos dentro de cada associação profissional: um órgão de supervisão, composto por 20% de personalidades externas à profissão, e um provedor. Várias ordens acusam o Executivo de "ingerência".
Também no âmbito do reforço da transparência, segundo o "Público", o Executivo pretende que os bastonários passem a entregar uma declaração de interesses e património, à semelhança do que já acontece com os titulares de cargos políticos.
Modernizar o mercado de trabalho
Ao agilizar a entrada nas profissões, o Governo acredita que está a possibilitar que os jovens candidatos integrem "mais cedo o mercado de trabalho", tornando a economia "mais competitiva e inovadora".
Para o Governo, quais as vantagens do polémico órgão de supervisão?
O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, revelou que cada órgão de supervisão será composto por 40% de inscritos na respetiva ordem, com outros 40% destinados a académicos da área. Os restantes 20% serão "personalidades de reconhecido mérito" com origem externa. Todos serão eleitos pelos membros de cada ordem, sendo que o presidente também será externo.
O secretário de Estado Adjunto e da Justiça, Jorge Alves Costa, justificou, na segunda-feira, que são as personalidades externas às profissões "que, muitas vezes, têm o conhecimento e a informação [necessárias] para abrir novos horizontes" nas ordens.
Segundo a proposta de lei do Governo, o conselho de supervisão terá "poderes de controlo, nomeadamente em matéria de regulação do exercício da profissão". Mediante a proposta do Conselho Nacional, pode fixar "qualquer taxa relativa às condições de acesso à ordem".
Este órgão acompanhará a atividade dos órgãos disciplinares. Carlos Cortes critica essa possibilidade, argumentando que as questões em causa são "muito sensíveis" e que, por esse motivo, não devem estar acessíveis a elementos externos.
O órgão de supervisão da Ordem dos Médicos será composto por 15 elementos. Destes, seis serão médicos inscritos na ordem, outros seis serão académicos e três serão personalidades externas. O presidente do organismo também não será médico.
A criação do órgão de supervisão está a ser criticada. Por que razão?
As críticas a este novo órgão são comuns a várias associações. Ao JN, o bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes, afirmou, na terça-feira, que o órgão de supervisão terá um "poder controlador", nomeadamente pelo facto de 60% dos seus integrantes serem "não médicos".
A bastonária da Ordem dos Advogados, Fernanda de Almeida Pinheiro, considera-o uma "ingerência absolutamente intolerável". Aliás, já frisou que esta figura não existe em mais nenhum país da União Europeia e que os seus colegas estrangeiros ficam "estarrecidos" quando lhes fala do tema.
O presidente do Conselho Nacional das Ordens Profissionais, António Mendonça - que é, também, bastonário dos economistas -, falou igualmente em "ingerência" no funcionamento destas associações.
O ministro da Saúde garantiu que as ordens não sofrerão "qualquer perda de competências", uma vez que os órgãos supervisores não terão "funções de coordenação técnica ou de controlo técnico". O governante considerou que não existe qualquer "intrusão" e que, como tal, este assunto é uma "falsa questão", que cabe "desmistificar".
Os advogados acusam o Governo de lhes retirar competências, dando-as a quem não é qualificado. Por que motivo?
A Ordem dos Advogados denuncia que o Governo se prepara para retirar aos advogados e aos solicitadores atos que, até aqui, só podiam ser feitos por eles, como a elaboração de contratos, a cobrança de dívidas ou a consulta jurídica. Os licenciados em Direito não inscritos na ordem passarão a poder desempenhar essas tarefas.
A bastonária Fernanda de Almeida Pinheiro já afirmou que o diploma vai "legalizar a procuradoria ilícita", acusando o Executivo de ceder a 'lobbies'. A vice-presidente da Ordem, Lara Roque Figueiredo, alinhou pelo mesmo discurso, apontando o dedo às imobiliárias e às empresas de recuperação de créditos.
Fernanda Pinheiro alegou que o diploma permitirá que "pessoas sem cédula de advogado" - e, no limite, não licenciadas em Direito - passem a poder desempenhar os referidos atos. Sustentou, também, que a alteração irá acentuar as diferenças económicas no país: os clientes mais ricos continuarão a procurar advogados, ao passo que os mais pobres ficarão "à mercê sabe-se lá de quem".
De modo a protestar contra o diploma, a bastonária admite mesmo, "se for preciso", parar os trabalhos dos tribunais. Também promete ir "até às últimas instâncias", incluindo Comissão Europeia e Tribunal Judicial Europeu, para travar as mudanças.
E que resposta deu o Governo aos advogados?
Na segunda-feira, o secretário de Estado Adjunto e da Justiça, Jorge Alves Costa, rejeitou as críticas da Ordem dos Advogados, frisando que "não há, em lado nenhum da proposta de lei" do Governo, algo que estipule uma retirada de direitos à referida classe.
"Só se houvesse alguma retirada é que se poderia dizer que [o advogado] perdeu competências", argumentou.
O governante referiu que o Governo se limitou a "criar melhores condições", para que os jovens acedam "a determinadas atividades que, até agora, estavam circunscritas a advogados e agentes de execução".
Alves Costa rejeitou que o alargamento dessas atividades a um universo mais vasto de profissionais diminua a qualidade dos serviços prestados.
A Ordem dos Advogados também repudia o plano que o Governo tem para os estágios. Porquê?
Essencialmente, porque entende que a fasquia a nível remuneratório - mínimo de 950 euros por mês - é incomportável. "Se a maioria dos advogados exerce em prática individual, com que dinheiro vão conseguir pagar estes valores?", indagou, em declarações ao "Jornal de Negócios".
Fernanda de Almeida Pinheiro defendeu que a única forma de tornar estes estágios viáveis é o Governo criar "uma bolsa idêntica à que existe para os estagiários das empresas".
Também a Ordem dos Solicitadores é crítica desta solução. O bastonário Paulo Teixeira afirmou que a proposta em causa é feita "a pensar nas grandes sociedades de advogados de Lisboa ou do Porto", mas não nos profissionais do "país real".
A criação da figura do provedor foi igualmente alvo de críticas. Porquê?
O bastonário da Ordem dos Médicos considera "lamentável" que o provedor não seja médico e seja proposto pelo órgão de supervisão. "Não faz sentido absolutamente nenhum", refere.
Segundo o diploma do Governo, o provedor terá como missão "defender os interesses dos destinatários dos serviços profissionais prestados pelos membros da ordem". Compete-lhe analisar as queixas apresentadas e fazer recomendações para a sua resolução.
"O provedor é uma personalidade independente, não inscrita na ordem, designada pelo bastonário, sob proposta do órgão de supervisão, não podendo ser destituído no seu mandato, exceto por falta grave no exercício das suas funções", indica a proposta de lei.
E o que dizem as outras ordens?
O panorama geral é de desagrado. Desde segunda-feira, dia em que o diploma do Governo deu entrada no Parlamento, várias ordens têm vindo reagir às mudanças propostas.
O bastonário dos Economistas, António Mendonça, afirma que há "ingerência" nas ordens, nomeadamente no que toca à criação do órgão de supervisão.
A Ordem dos Fisioterapeutas fez saber ter lido a proposta de lei com "algum desagrado", lamentando que alguns atos passem a poder ser praticados "por outras pessoas não inscritas na Ordem".
Também a bastonária dos enfermeiros, Ana Rita Cavaco, se tinha mostrado cética quanto ao órgão de supervisão: "Como é que eu vou ter aqui pessoas de outras profissões a avaliar se um enfermeiro cometeu ou não cometeu um erro?", questionou, na altura.
Ao JN, Carlos Cortes, bastonário dos médicos, reconheceu que, apesar das divergências, houve uma "evolução muito positiva" da posição do Governo, sobretudo por este ter aceite incluir a lei do ato médico nos estatutos da sua Ordem.
Também a Ordem dos Nutricionistas admitiu progressos, nomeadamente pelo facto de o exercício da profissão ficar dependente da inscrição na referida associação.