O que durante muito tempo foi visto como um esforço ilusório para transformar metais comuns em ouro está a ser reavaliado pelos investigadores como um sério precursor da química, no qual as mulheres estiveram fortemente envolvidas.
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Há cerca de 20 anos, Matteo Martelli estava a folhear uma livraria quando se deparou com uma obra intrigante. Ao abrir as páginas de 'As origens da alquimia no Egipto greco-romano', ficou fascinado.
Martelli é professor na Universidade de Bolonha, em Itália, com formação em história das línguas clássicas. O seu interesse foi despertado por sugestões do rico passado e mitologia da alquimia no livro de Jack Lindsay de 1970.
Lições de história
"O texto menciona um relato muito interessante sobre as origens da alquimia, em que se dizia que as suas práticas eram uma revelação dos anjos caídos", afirmou Martelli. "Isto dava a entender que os anjos revelavam os segredos da natureza às mulheres em troca de favores sexuais, algo de que eu nunca tinha ouvido falar".
A alquimia está envolta em espiritualidade e religião, tendo sido muitas vezes descartada como uma pseudociência que envolve esforços ilusórios para transformar metais comuns em ouro.
Mas Martelli foi inspirado a descobrir se havia mais do que isso. Isto abriu-lhe um novo caminho para a história da ciência, que culminou no projeto AlchemEast, financiado pela UE, que liderou. A iniciativa, iniciada em dezembro de 2017, terminou em abril deste ano.
Ao longo dos cinco anos, a AlchemEast analisou a alquimia desde 1 500 a.C. até ao início dos anos 1 000 d.C., traçando-a desde a antiga Babilónia, passando pelo Egito greco-romano, até ao início do período islâmico e procurando desmantelar a visão pejorativa tradicional das suas práticas.
Longe de se limitar ao ouro, a alquimia antiga recorria a múltiplas técnicas de manipulação de matérias-primas para fabricar metais tingidos, pedras preciosas artificiais, vidros e têxteis coloridos e compostos químicos, segundo Martelli.
"É importante olhar para isto para compreender o papel que a química e a alquimia, que na minha opinião são basicamente as mesmas coisas em períodos diferentes, desempenharam no passado na construção da ciência moderna", afirmou.
Experiências antigas
Para além de se debruçar sobre textos antigos e receitas químicas, a sua equipa tentou mesmo recriar práticas passadas no laboratório para perceber como algumas das ideias evoluíram.
Os investigadores reproduziram tinta dourada artificial utilizando ingredientes como o mel e a sílica e experimentaram as chamadas águas divinas, que contêm compostos de enxofre.
"É espantoso: é possível fazer com que a prata se pareça exatamente com o ouro apenas mergulhando uma moeda de prata nestas águas divinas durante alguns segundos", disse Martelli. "Percebe-se realmente porque é que começaram a acreditar que era possível fazer ouro através deste processo". Outras experiências que envolviam a extração de mercúrio do cinábrio permitiram compreender por que razão o mercúrio era visto na tradição alquímica como um constituinte comum de todos os metais.
Martelli planeia fazer perfumes a partir de receitas inscritas em antigas tábuas da Mesopotâmia. Ele espera que a realização de experiências de formas diferentes das utilizadas atualmente ofereça uma nova perspetiva e resulte mesmo em descobertas científicas.
Pegadas femininas
A investigação de Martelli e de outros nas últimas décadas está a levar a uma reavaliação da visão tradicional da alquimia, considerando-a agora como um sério precursor da química moderna.
Neste processo, está a ser feita luz sobre o importante papel que as mulheres desempenharam nas práticas da alquimia. As mulheres constituem apenas cerca de um terço dos investigadores científicos a nível mundial e a falta de modelos femininos visíveis é reconhecida como uma das razões.
"Nas primeiras fases da alquimia, as mulheres parecem ter desempenhado um papel importante», afirmou Martelli. "E não eram apenas praticantes, mas apareciam como deusas na mitologia, como é o caso de Ísis, a antiga deusa egípcia da cura e da magia, que se diz ter encontrado um anjo que lhe revelou segredos alquímicos".
Uma das primeiras praticantes mais proeminentes foi Maria, a Judia, que viveu em Alexandria algures entre os séculos I e III d.C. e a quem se atribui a invenção de vários tipos de aparelhos químicos.
Entre elas, o banho-maria, um banho de água quente que recebeu o seu nome e que é atualmente utilizado pelos cozinheiros.
O envolvimento das mulheres na alquimia continuou no início do período moderno, de acordo com um outro projeto financiado pela UE, denominado WALCHEMY, que analisou obras literárias da autoria de mulheres na Grã-Bretanha dos séculos XVI e XVII.
A escrita das mulheres
As sementes do projeto foram lançadas quando Sajed Chowdhury, professor assistente de literatura inglesa moderna na Universidade de Utrecht, nos Países Baixos, estava a fazer o seu doutoramento sobre a escrita feminina no período renascentista, entre os séculos XIV e XVII.
"O que descobri foi que, na maior parte das vezes, as escritoras, tal como os seus contemporâneos masculinos, recorriam a esta ideia de alquimia, que era, na verdade, a arte da transmutação química de metais, ervas, minerais e plantas", disse Chowdhury.
Com a ajuda de textos redescobertos por estudiosos feministas nas últimas décadas, encontrou provas - em formas literárias como a poesia e os livros de receitas químicas - de que o envolvimento das mulheres era ainda mais generalizado do que esperava.
"O grande número de mulheres que se dedicavam à linguagem da alquimia surpreendeu-me", disse Chowdhury.
Ao analisar estes textos, reconstruiu uma história da alquimia que não era do domínio exclusivo dos homens, mas na qual as mulheres de diferentes origens desempenharam um papel central - ajudando a contar a história destas vozes esquecidas.
"Não o faziam necessariamente por dinheiro, mas como cuidados de saúde caritativos e como parte do seu esforço cristão de trabalhar nas suas comunidades", afirmou Chowdhury. "A atividade científica dentro de casa envolvia tanto homens como mulheres".
Um exemplo são os livros de receitas e as meditações em prosa de Lady Grace Mildmay, uma nobre inglesa que praticou alquimia médica e espiritual na sua casa e na sua área local de Northamptonshire durante a segunda metade do século XVI.
As fontes apontam para uma prática mais alargada que envolve as mulheres.
"O que sobrevive em grande número são os livros de receitas que são basicamente instruções sobre como gerir a casa», disse Chowdhury. «Estas contêm o que descreveríamos como procedimentos alquímicos, como a destilação, a fermentação e a calcinação".
Estes processos envolviam o gosto por ervas para usar em medicamentos, instruções para fazer detergentes e latões de limpeza e procedimentos culinários, tais como a forma de purificar o mel.
Chowdhury afirmou que mesmo o trabalho de Robert Boyle, um filósofo natural anglo-irlandês considerado por muitos como um dos «pais da química moderna», terá sido influenciado pela sua irmã mais velha, Lady Ranelagh, que fazia experiências em casa.
Números-chave
A investigação deu origem a um estudo de Chowdhury intitulado 'Women Writers and Alchemy in Early Modern Britain' (Escritoras e Alquimia na Grã-Bretanha Moderna), que está a ser revisto pelos pares.
Destaca obras de 12 mulheres, focando, entre outras, Mildmay, Aemilia Lanyer, que era filha de um músico da corte, a republicana Lucy Hutchinson e a mística protestante Jane Lead.
Entretanto, Chowdhury planeia continuar a investigar as práticas científicas nos conventos do século XVII, numa tentativa de descobrir o que acontecia em ambientes exclusivamente femininos.
"Sabemos que as mulheres destes conventos praticavam medicina e se dedicavam à herbologia, mas estes arquivos conventuais estão em grande parte inexplorados e encontram-se dispersos pela Europa", afirmou.
Para além de atribuir maior gravidade à alquimia, o estudo desta área está a dar mais relevo ao papel da mulher no passado científico mundial.
"Vemos que o alquimista é, na maioria das vezes, do sexo feminino», disse Chowdhury. «Se quisermos ter uma compreensão mais inclusiva da história da ciência, temos de incluir o contributo das mulheres".
A investigação neste artigo foi financiada através do Conselho Europeu de Investigação da UE (ERC) e da MSCA (Marie Skłodowska-Curie Actions). Este artigo foi originalmente publicado na Horizon, a Revista de Investigação e Inovação da UE.