Os investigadores financiados pela UE estão na vanguarda do avanço de uma compreensão mais profunda do cérebro humano e da aceleração dos tratamentos para várias doenças neurológicas.
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As recentes descobertas no domínio da neurociência soam quase como milagres: técnicas de neuroestimulação que ajudam os doentes paralisados a andar de novo, ou um implante que pode ajudar a restaurar a visão dos cegos. Estes são apenas dois dos muitos resultados do Projeto Cérebro Humano Human Brain Project (HBP), uma iniciativa de investigação de 10 anos financiada pela UE que aumentou significativamente a compreensão científica do cérebro humano.
Um vasto domínio de investigação
Trata-se de um dos maiores e mais ambiciosos projetos de investigação alguma vez financiados pela UE, que publicou recentemente uma avaliação exaustiva das principais realizações do HBP ao longo de 10 anos.
A iniciativa, que decorreu entre 2013 e 2023, envolveu 150 instituições e centenas de investigadores de 19 países. Mas a sua dimensão e duração foram proporcionais ao seu objetivo de investigação, afirmou Katrin Amunts, neurocientista de renome mundial, que liderou esta ambiciosa colaboração.
"O cérebro humano é o alvo de investigação mais desafiante e interessante - comparável ao universo", afirmou. "Não existe um único laboratório, ou mesmo um país, que tenha a capacidade de abordar de forma abrangente a complexidade do cérebro".
É por isso que, segundo Amunts, foi uma "grande vantagem" o facto de os investigadores do HBP terem beneficiado de um financiamento comunitário tão vasto e a longo prazo.
"As conquistas que alcançámos não teriam sido possíveis de outra forma".
Ajuda para milhões de pessoas
As doenças cerebrais representam um desafio global, afirmou, e as realizações da equipa do HBP ajudarão a prestar melhores cuidados a milhões de pessoas. Mais de 3 mil milhões de pessoas - ou seja, mais de 40% da população mundial - são afetadas por doenças neurológicas, o que as torna a principal causa de doença e incapacidade, sobrecarregando doentes, famílias e prestadores de cuidados em todo o mundo.
Para Amunts, a resposta está em mais investigação. "Para tratar as doenças cerebrais de forma mais eficaz, é necessário compreender melhor o funcionamento do cérebro", afirmou.
Trabalhando na interface da neurociência e da tecnologia da informação, os investigadores do HBP lançaram uma luz considerável sobre a estrutura, a função e a disfunção do cérebro, conduzindo a novas aplicações na medicina e na tecnologia.
Já teve um impacto prático notável. Registaram-se avanços, por exemplo, na compreensão da visão.
Os investigadores do HBP da Academia Real Holandesa de Artes e Ciências criaram um dispositivo capaz de transmitir padrões visuais diretamente para o córtex visual do cérebro, abrindo caminho para um futuro método revolucionário de recuperação da visão.
Do mesmo modo, os avanços notáveis na neuroestimulação estão a oferecer uma nova esperança às pessoas afetadas pela paralisia.
Na Suíça, uma equipa do Instituto Federal Suíço de Tecnologia de Lausanne desenvolveu modelos personalizados para a estimulação da espinal medula, permitindo que os doentes paraplégicos se levantem e voltem a andar.
Atlas do cérebro
Uma das principais realizações do projeto, segundo Amunts, foi a criação do atlas cerebral, que compara ao Google Maps para o cérebro.
O atlas mapeia mais de 200 áreas cerebrais individuais e fornece mapas de referência anatómica a vários níveis, até ao nível do micrómetro.
"É completamente único nas suas caraterísticas e pormenores. Permite que os investigadores aumentem e diminuam o zoom para ver como os diferentes elementos do cérebro estão ligados", disse Amunts.
Esta visão geral é crucial para compreender que áreas cerebrais estão envolvidas em que função, disse. Por exemplo, quando um doente sofre um acidente vascular cerebral, permite a partilha de informações mais pormenorizadas e uma resposta mais personalizada às necessidades do doente. A secção BigBrain do atlas já foi utilizada num grande ensaio clínico, o estudo EPINOV em França, em que os cientistas utilizaram modelos cerebrais personalizados para identificar as melhores áreas-alvo para a cirurgia da epilepsia. Isto poderia melhorar a vida de milhões de doentes com epilepsia que necessitam de cirurgia para aliviar os seus sintomas.
A tecnologia de personalização destes modelos foi igualmente desenvolvida no HBP, por investigadores da Universidade de Marselha.
Comunicação cérebro-computador
Para além da saúde, os investigadores do HBP também deixaram a sua marca na inteligência artificial (IA), onde os progressos foram acompanhados por avanços na neurociência. O trabalho da equipa de Amunts serviu como uma ponte eficaz entre os dois.
Os novos métodos de computação tornaram-se, assim, ferramentas para a investigação do cérebro, ao mesmo tempo que a nossa melhor compreensão do cérebro está também a contribuir para o avanço das tecnologias de IA, desde a computação neuromórfica, modelada no cérebro humano, até à robótica cognitiva.
"A investigação em IA, redes neuronais artificiais e computação neuromórfica tem ligações diretas com a investigação sobre o cérebro", afirmou Amunts. "Se compreendermos melhor a forma como o cérebro aprende e funciona, podemos aprender a construir redes neuronais artificiais mais eficientes".
Acesso aberto
Para Philippe Vernier, diretor do Instituto de Neurociências Paris-Saclay, em França, "o HBP foi um verdadeiro sucesso". Vernier, que é também diretor de investigação do Centro Nacional de Investigação Científica francês, lidera, juntamente com Amunts, uma iniciativa de investigação financiada pela UE denominada EBRAINS 2.0.
A nova iniciativa é uma plataforma aberta que oferece acesso a todas as ferramentas digitais, serviços e conjuntos de dados desenvolvidos no âmbito da HBP, incluindo os atlas cerebrais.
À medida que o trabalho de uma década dos investigadores do HBP avançava, tornou-se claro para Amunts "que também tínhamos de criar uma plataforma digital conjunta". Para Vernier, a existência de um projeto de investigação de acompanhamento financiado pela UE é essencial para que a comunidade científica possa colher os benefícios da investigação do HBP.
"É importante mostrar o que o HBP foi capaz de produzir e torná-lo disponível para a comunidade científica em geral", afirmou. "A EBRAINS está aberta a todos".
Na plataforma, os neurocientistas podem introduzir e partilhar dados e colaborar na investigação sobre o cérebro.
"Pode ser uma verdadeira mudança de paradigma", disse Vernier. "O principal desafio da investigação sobre o cérebro é a sua complexidade. Para resolver este problema, temos de nos unir, recolher dados e transformá-los em algo útil"
Mudar vidas
Este esforço coletivo é necessário para uma melhor compreensão do cérebro e também para o tratamento de muitas doenças cerebrais, como a doença de Alzheimer, a doença de Parkinson e a esquizofrenia.
"Ao utilizarmos novas ferramentas, abrimos caminho para tratamentos melhores e mais personalizados para estas doenças", afirmou Vernier.
Em suma, a infraestrutura de investigação EBRAINS tem como objetivo salvaguardar o legado do HBP e trazer as mais recentes descobertas científicas para os ensaios clínicos e para os hospitais.
Este artigo foi originalmente publicado na Horizon, a Revista de Investigação e Inovação da UE.