Durante milhares de anos, o homem transformou a madeira em carvão vegetal através de uma técnica chamada pirólise. Agora, Jean-Michel Douarre quer utilizar este método antigo para um objetivo moderno: transformar pneus de automóveis velhos em pneus novos.
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Douarre, responsável pela investigação de materiais sustentáveis no fabricante francês de pneus Michelin, espera que a pirólise coloque a sua indústria numa posição mais ecológica.
Carbono limpo
Os pneus, que são feitos de borracha e produtos petroquímicos, contêm muito carbono. E a produção de pneus envolve atualmente a queima de combustíveis fósseis que libertam gases com efeito de estufa para a atmosfera.
A pirólise é a decomposição a alta temperatura de materiais sem oxigénio e, ao contrário da incineração, utiliza a decomposição térmica para os converter para reutilização.
Os cientistas aprenderam a utilizar esta técnica para produzir combustíveis, produtos químicos e materiais a partir de resíduos ricos em carbono, bem como de biomassa renovável. E enquadra-se perfeitamente no objetivo da UE de uma economia circular que envolve mais reciclagem e menos resíduos.
"Na Europa, a maior parte dos pneus em fim de vida são recolhidos, o que é bom, mas quase nenhum deles é utilizado para produzir matérias-primas para pneus novos", afirmou Douarre.
Lidera um projeto de investigação que recorreu a financiamento da UE para demonstrar que a pirólise pode transformar pneus velhos numa versão limpa de carbono negro, um dos principais ingredientes dos pneus.
Esta substância rica em carbono constitui 20% a 30% de um pneu médio e é normalmente derivada de combustíveis fósseis, incluindo o petróleo. O carbono negro dá cor aos pneus, evita os danos causados pela luz ultravioleta e contribui para a sua durabilidade. Denominado BlackCycle, o projeto de quatro anos dirigido por Douarre deverá estar concluído em junho de 2024.
A pirólise gera três produtos: um líquido, um sólido e um gás. Ao ajustar as condições da câmara de pirólise - como a temperatura e a velocidade de aquecimento - é possível controlar a quantidade e a composição química destes produtos.
A equipa da BlackCycle descobriu que pode ajustar o processo para gerar grandes quantidades de óleo a partir da pirólise de pneus velhos. Os investigadores utilizaram este óleo, que é quimicamente semelhante ao dos combustíveis fósseis, para produzir um tipo de carbono negro de alta qualidade.
"Produzimos várias toneladas de carbono negro", afirma Douarre.
Continuar a rolar
Desde então, os investigadores utilizaram este carbono negro para fabricar um pneu de autocarro, que foi testado para utilização nas estradas.
Verificou-se que o protótipo apresentava uma resistência ao rolamento, níveis de durabilidade e outras características comparáveis às dos pneus atuais.
Mas não é só o carbono negro que está a ser produzido.
"O que queremos fazer no processo de reciclagem é utilizar tudo o que produzimos", afirmou Douarre.
Por exemplo, o gás criado pela pirólise dos pneus é utilizado como combustível para alimentar todo o processo, enquanto o óleo que não é convertido em carbono negro, pode ser utilizado para fabricar resinas.
A esperança é que, no futuro, estes também possam ser utilizados em pneus novos.
Resíduos valiosos
A Europa produz cerca de 3,5 milhões de toneladas de pneus usados por ano, de acordo com a Associação Europeia de Fabricantes de Pneus e Borracha.
Pelo menos 90% destes pneus em fim de vida são reutilizados de alguma forma. Cerca de 40% são incinerados para produção de energia e cerca de metade são reciclados.
A maior parte dos resíduos de pneus reciclados - 70% - é triturada para produzir grânulos e pó de borracha, sendo grande parte destes resíduos transformados em campos desportivos artificiais e pavimentos de parques infantis.
O restante é incorporado no cimento ou utilizado em projetos de engenharia civil. Por exemplo, os pneus inteiros podem ser utilizados para construir barreiras contra a erosão costeira, enquanto os pneus triturados são utilizados em fundações para estradas e caminhos-de-ferro.
No entanto, os investigadores e os fabricantes de pneus estão interessados em produzir produtos de maior valor a partir de resíduos de pneus.
A Michelin, o maior fabricante de pneus do mundo, quer substituir todas as matérias-primas dos seus produtos por substâncias sustentáveis até 2050, segundo Douarre.
"A reciclagem de pneus é uma das formas de o fazer", afirmou.
Os pneus são uma das principais fontes de poluição por microplásticos a nível mundial. A Pew Charitable Trusts afirmou num relatório de 2020 que as partículas de pneus eram responsáveis por quase quatro quintos dos microplásticos nos oceanos.
Impulso dos plásticos
A pirólise está também a ser cada vez mais utilizada para reciclar plásticos.
A reciclagem de plásticos através da pirólise é normalmente efetuada a temperaturas de cerca de 400°C, a chamada pirólise a baixa temperatura. Os óleos de pirólise resultantes são depois processados para produzir hidrocarbonetos.
O aumento da temperatura de pirólise para mais de 700°C aumenta a produção de gases com esta técnica, de acordo com Rebeca Yuste, especialista em economia circular da empresa petroquímica espanhola Repsol.
Isto permite decompor os plásticos difíceis de reciclar e transformá-los em propano e eteno.
Estes gases, conhecidos como olefinas, são os blocos químicos de construção dos plásticos e são normalmente produzidos a partir de produtos petroquímicos. As olefinas dos plásticos antigos podem ser utilizadas para fabricar novos plásticos, tornando mais ecológico outro grande sector da indústria transformadora.
Yuste lidera um projeto financiado pela UE para demonstrar que este processo pode funcionar à escala industrial. Denominado Plastics2Olefins, o projeto tem uma duração prevista de cinco anos, até maio de 2027.
O seu objetivo é conceber e desenvolver uma unidade de demonstração industrial em tamanho real para a reciclagem de plásticos numa fábrica de produtos químicos da Repsol no município espanhol de Puertollano, entre Madrid e Sevilha.
A equipa já construiu uma unidade piloto mais pequena.
Os investigadores irão aperfeiçoar a tecnologia neste local antes de a ampliarem para a instalação de demonstração de maiores dimensões, que deverá começar a funcionar em 2028.
"Vamos multiplicar a capacidade por 100", disse Yuste.
Reduzir as emissões
Embora em teoria a pirólise funcione com qualquer tipo de resíduos de plástico, na prática as coisas não são assim tão simples.
"Se utilizarmos resíduos plásticos de muito baixa qualidade ou plásticos com contaminantes, a qualidade dos produtos finais será pior", afirmou Yuste.
O plástico de má qualidade ou altamente contaminado também reduzirá a proporção de gás de pirólise produzido em comparação com óleos e sólidos, tornando o processo menos rentável.
"Na fábrica piloto, vamos testar diferentes qualidades de resíduos plásticos para ver qual é a pior qualidade de resíduos plásticos que podemos introduzir no processo", disse Yuste.
Se for realizada à escala industrial, a técnica de pirólise a alta temperatura poderá resultar em 70% menos emissões de gases com efeito de estufa do que os atuais métodos de reciclagem de plásticos, segundo a Repsol.
As razões: seria possível executar o processo utilizando 100% de eletricidade renovável e a pirólise a alta temperatura é uma forma muito mais eficiente e menos intensiva em energia para produzir olefinas do que o método a baixa temperatura.
Uma vez em funcionamento, a fábrica será utilizada para produzir polietileno e polipropileno, que são dois dos plásticos mais utilizados no mundo e que se encontram em produtos como sacos do lixo, embalagens de alimentos, copos descartáveis e tampas de garrafas.
Este artigo foi originalmente publicado na Horizon, a Revista de Investigação e Inovação da UE.