Os dispositivos inteligentes e a análise avançada de dados efetuada por investigadores financiados pela União Europeia poderão ajudar a aliviar milhões de pessoas afetadas por perturbações do sono.
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Clare Williams tinha 30 e poucos anos quando recebeu um diagnóstico inesperado: apneia obstrutiva do sono (AOS), a doença respiratória mais comum relacionada com o sono. Ao contrário do doente típico, ela era jovem, pequena e mulher. As pessoas diagnosticadas com AOS têm geralmente excesso de peso, são do sexo masculino e de meia-idade.
"Durante muito tempo, os médicos rejeitaram os meus sintomas porque eu não me enquadrava no perfil e não compreendiam o grave mal-estar que as minhas noites mal dormidas me estavam a causar", conta.
Soluções sem dormir
Erna Sif Arnardottir, uma especialista em sono com 20 anos de experiência na área, dedica-se a encontrar formas de identificação precoce, em pessoas como Williams e a tratar a AOS de forma mais eficaz.
"O problema é que o sono é uma área médica bastante recente e, em comparação com outras áreas, nem sempre é levada muito a sério", afirmou. "Os médicos recebem normalmente duas a quatro horas de formação sobre o sono, por isso, se quiserem saber mais, têm de procurar aprender mais depois da sua educação formal".
No entanto, os distúrbios do sono podem ter um impacto desproporcionado na vida de uma pessoa. Estima-se que a AOS afete 175 milhões de europeus e está associada a muitas consequências negativas para a saúde, incluindo um risco acrescido de diabetes e doenças cardíacas, e sonolência diurna crónica, que pode afetar a capacidade de uma pessoa funcionar bem na vida quotidiana.
A nossa entrevistada questiona a seriedade com que os médicos encaram atualmente os distúrbios do sono. "A abordagem deles é bastante variada e gostaríamos que isso mudasse", afirmou. Arnardottir é a investigadora principal do SLEEP REVOLUTION, um projeto de investigação internacional de quatro anos financiado pela UE. Com conclusão prevista para 2025, este projeto de 15 milhões de euros envolve 39 instituições e empresas parceiras na Europa e na Austrália, incluindo a Sociedade Europeia de Investigação do Sono e a Base de dados europeia sobre a apneia do sono (ESADA). O seu objetivo é revolucionar o diagnóstico e o tratamento da AOS.
Como cientista biomédica, Arnardottir acredita firmemente no aproveitamento do poder das novas tecnologias e da inteligência artificial (IA) para resolver este problema médico intratável.
"O nosso objetivo é utilizar a IA para avaliar a gravidade da apneia do sono e adaptar o tratamento a cada doente", afirmou Arnardottir, que é diretora do Instituto do Sono da Universidade de Reiquiavique e secretária da Sociedade Europeia de Investigação do Sono.
Respiração ofegante
A AOS é considerada moderada quando uma pessoa tem mais de 15 paragens respiratórias ou períodos de respiração reduzida por noite e grave quando tem um episódio de dois em dois minutos ou mais. Os intervalos na respiração, que são a marca registada da doença e resultam do colapso ou bloqueio da passagens da garganta, são seguidos por respiração ruidosa, sons de engasgamento e ressono à medida que o ar retoma o seu fluxo.
"Levantava-me de manhã com dores de garganta e de cabeça, e estava exausta. Alguns dias adormecia literalmente em pé", disse Williams.
Este cansaço é compreensível. Em cada episódio de AOS, a pessoa acorda por breves instantes, normalmente sem se lembrar, o que resulta numa enorme perda de qualidade e profundidade do seu sono.
Normalmente, a pessoa não se apercebe de que está a sair do sono, uma e outra vez, e é por isso que podem passar anos antes de procurar ajuda médica. E quando o faz, é frequente passar muito tempo até ser vista numa clínica especializada em sono.
"Há longas listas de espera para as clínicas do sono - até dois anos nalguns hospitais - o que é inaceitável, dada a gravidade da apneia do sono", afirma Arnardottir.
Objetivo casa
A equipa responsável pelo SLEEP REVOLUTION espera acelerar o diagnóstico utilizando a tecnologia para levar os testes de sono mais avançados para fora da clínica e para casa das pessoas. Isto vai torná-los mais fáceis e mais económicos e deverá encurtar o tempo de espera por uma avaliação do sono.
"As clínicas do sono atuais funcionam como se ainda utilizássemos registos em papel, basicamente contando o número de vezes que uma pessoa para de respirar", afirmou Arnardottir. Este é utilizado como índice de gravidade da AOS sem ter em conta os efeitos fisiológicos destas paragens, como a fragmentação do sono, a diminuição dos níveis de oxigénio no sangue e o stress no sistema cardiovascular. Segundo ela, este índice, por si só, não tem suficientemente em conta os sintomas das pessoas que sofrem de AOS e precisa de ser atualizado.
A equipa do SLEEP REVOLUTION está a testar a utilização de um dispositivo de monitorização do sono auto-administrado para ser usado pelo doente em casa. Durante três noites, este dispositivo recolhe dados sobre o sono que são transmitidos aos médicos. À distância, podem avaliar o estado do doente e o risco que representa para a sua saúde a longo prazo.
"Os dados fornecidos por este dispositivo, bem como por uma aplicação e por uma pulseira inteligente usada durante períodos mais longos, serão preditivos do risco individual de uma pessoa desenvolver uma doença", afirmou Arnardottir. "A nossa convicção é que a apneia do sono não é igualmente perigosa para toda a gente: é nas pessoas em maior risco que temos de a encontrar rapidamente e dar prioridade ao tratamento.".
Mil doentes com suspeita de AOS de toda a Europa estão atualmente a ser avaliados, tanto em clínicas como em casa, utilizando o equipamento da equipa.
Os processos foram testados primeiro na Islândia, com doentes-piloto que utilizaram a aplicação e os dispositivos portáteis inteligentes durante três meses. Tudo foi depois traduzido em 15 línguas diferentes para ser testado em toda a Europa, da Suécia à Roménia, Grécia, Turquia, Noruega e Estónia. Todos os dados recolhidos são armazenados num servidor central sediado na Islândia, onde são disponibilizados aos parceiros do projeto para trabalharem com eles.
A transferência do diagnóstico do hospital para o domicílio abre a possibilidade de efetuar diagnósticos de várias noites, o que é demasiado dispendioso em ambiente hospitalar. Desta forma, é possível detetar alterações na gravidade da AOS e na qualidade do sono em diferentes noites e observar o sono mais natural das pessoas em casa.
Melhorar o tratamento
Williams, agora com 50 anos, já conhece a causa da sua apneia - uma doença genética hereditária rara chamada síndrome de Ehlers-Danlos que a torna propensa a esta doença - e segue um protocolo de tratamento que a mantém de boa saúde.
Utiliza um aparelho de pressão positiva contínua nas vias respiratórias (CPAP) durante a noite para evitar interrupções na respiração. Esta máquina, do tamanho de uma caixa de sapatos, fornece um fluxo constante de ar através de uma máscara facial, mas tem as suas desvantagens: é incómoda de transportar e a máscara pode ficar demasiado solta, escorregar e perder ar de forma ruidosa. Como coordenadora dos doentes da Fundação Europeia do Pulmão - uma organização que tem por objetivo melhorar a saúde dos pulmões, incentivando os médicos a trabalharem mais de perto com os doentes, tem consciência de que muitos doentes com apneia não gostam da máquina CPAP e que alguns optam mesmo por dormir sem ela, pondo ainda mais em risco a sua saúde.
Alterações do estilo de vida
As intervenções no estilo de vida são outra parte da estratégia da equipa de investigação para ajudar as pessoas a reduzir a gravidade da sua AOS, uma vez que existe uma forte correlação entre a obesidade e a apneia do sono. "Queremos que as pessoas tenham uma experiência médica mais personalizada", afirmou Arnardottir.
Num conjunto de experiências, grupos de doentes com AOS recebem instruções de um especialista em desporto ou da aplicação SLEEP REVOLUTION, com o objetivo de fortalecer os seus músculos, incluindo os da boca e da garganta. Também recebem aconselhamento nutricional, uma vez que o excesso de peso pode causar um estreitamento das vias respiratórias.
Espera-se que as intervenções encontradas para reduzir os sintomas e a gravidade da AOS sejam partilhadas com os médicos para os ajudar a detetar e tratar a AOS mais rapidamente.
"O triste facto é que as pessoas que acabam por ser tratadas têm frequentemente apneia do sono há anos e anos", afirma Arnardottir.
Este artigo foi originalmente publicado na Horizon, a Revista de Investigação e Inovação da UE