Os cientistas cidadãos estão a recorrer à sua experiência pessoal para ajudar os investigadores a criar novos alimentos fermentados à base de plantas e a maximizar os seus benefícios para a saúde.
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Muitos se lembrarão da moda de fazer pão de massa fermentada que surgiu no auge da pandemia da covid-19, quando as pessoas estavam presas em casa e procuravam algo criativo para fazer.
Com as redes sociais cheias de imagens de "leveduras" de massa lêveda com nomes peculiares e pães estaladiços acabados de fazer, os padeiros caseiros descobriram as alegrias e os benefícios para a saúde dos alimentos fermentados.
"Durante a covid, muitas pessoas começaram a produzir pães de massa fermentada em casa", disse o Professor Christophe Courtin, um bioquímico alimentar da KU Leuven, a Universidade de Leuven, na Bélgica.
Agora, o financiamento da investigação da UE está a ajudar Courtin e uma equipa de peritos alimentares de renome da Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Itália, Países Baixos, Roménia, Suécia e Suíça a mobilizar esse exército de padeiros caseiros no interesse da ciência, e da nossa saúde.
Ponto de partida
A equipa HealthFerm, financiada pela UE durante quatro anos e liderada por Courtin, reúne investigadores e empresas alimentares para identificar microrganismos e processos úteis em alimentos fermentados tradicionais, como o pão de massa fermentada.
O seu objetivo é utilizar esta informação para ajudar a desenvolver novos alimentos fermentados à base de plantas que, segundo eles, podem ser bons tanto para as pessoas como para o planeta.
Um ponto de partida foi capitalizar o poder da ciência cidadã, em que os cidadãos participam voluntariamente em projetos científicos, e analisar leveduras de massa lêveda doadas por padeiros voluntários de diferentes países.
Um fermento de massa fermentada é feito a partir de uma mistura de farinha e água que é deixada a fermentar com a ajuda de microrganismos naturais presentes na farinha e no ambiente. Estas incluem leveduras selvagens (quase sempre Saccharomyces cerevisiae), bactérias do ácido lático e do ácido acético.
"Estas [bactérias] provêm de algumas espécies diferentes, mas, do ponto de vista funcional, são relativamente parecidas", explicou Nicholas Bokulich, microbiologista da ETH Zürich, na Suíça.
Esta cultura é utilizada como fermento natural para dar ao pão a sua textura leve e o seu sabor caraterístico. Até à data, a equipa da HealthFerm recolheu cerca de 800 amostras de leveduras de massa lêveda.
"As amostras vieram de toda a Europa", disse Bokulich.
A rede de cientistas cidadãos também tem vindo a testar a acidez das suas leveduras e a fornecer informações pormenorizadas sobre a forma como as alimentam e mantêm, incluindo, por exemplo, as temperaturas de armazenamento, os horários de alimentação e o tipo de farinha utilizada.
O trabalho está em curso, mas as amostras analisadas até agora revelam variações na diversidade microbiana influenciadas "de forma ligeira, mas relevante" pela localização, disse Bokulich.
"Estamos a tentar perceber se isto se deve à mistura de cereais, porque algumas misturas de farinhas são mais proeminentes numas regiões do que noutras, ou se há uma influência ambiental", afirmou.
O principal objetivo dos investigadores é identificar micróbios com propriedades consideradas benéficas para a nossa saúde, que possam ser utilizados para criar novos alimentos.
Conhecimentos antigos
Há muito tempo que os seres humanos utilizam os microrganismos para alterar e conservar os alimentos. A cerâmica da China neolítica sugere que as pessoas produziam uma bebida a partir de arroz fermentado, mel e fruta desde, pelo menos, 8 000 a.C.
Os alimentos fermentados já ocupam um lugar importante nas nossas dietas diárias, desde o pão à cerveja, vinho, queijo, iogurte, pickles, chucrute, miso e muito mais. Mais recentemente, o interesse pelos alimentos fermentados, como o kefir e a kombucha, tem vindo a aumentar.
Os investigadores da HealthFerm estão a tentar esclarecer melhor as alegações de saúde associadas a estes alimentos fermentados.
"No caso dos produtos lácteos fermentados, como o iogurte e o kefir, as provas têm vindo a acumular-se e é evidente que existem benefícios para a saúde", afirmou Courtin. De facto, estudos sugerem que estes alimentos reduzem o risco de diabetes, cancro, obesidade e doenças cardíacas.
Mas no caso dos alimentos fermentados à base de plantas, como o chucrute, o kimchi e o pão de massa fermentada, há menos investigação.
"Queremos investigar se esses benefícios para a saúde existem de facto", disse Courtin.
Courtin reconhece que, se olharmos para o que a fermentação faz, seria lógico que houvesse benefícios para a saúde. Seria, no entanto, útil ter dados mais sólidos. Sobretudo se os cientistas quiserem aproveitar esta informação para produzir novos tipos de produtos alimentares fermentados.
Decomposição bacteriana
A fermentação utiliza bactérias e leveduras para converter os ingredientes num produto final comestível. Estes microrganismos decompõem elementos dos alimentos, alterando o seu perfil de sabor e prolongando o seu tempo de conservação ao suprimir o crescimento de micróbios que poderiam causar a deterioração dos alimentos.
Estes processos são conhecidos por melhorarem a disponibilidade de vitaminas e minerais nos alimentos e por decomporem as proteínas e as fibras, tornando-as teoricamente mais fáceis de digerir.
No entanto, atualmente não existem dados que demonstrem claramente os benefícios para a saúde do consumo destes produtos e que expliquem as razões para tal.
Uma das razões pode ser o facto de os microrganismos de fermentação, por exemplo, produzirem os seus próprios subprodutos, como os ácidos gordos de cadeia curta.
"Sabemos que se estes ácidos gordos forem produzidos no nosso cólon, são benéficos para nós", explicou Courtin. "O que não sabemos é se são igualmente benéficos quando produzidos em alimentos."
A investigação sugere que os ácidos gordos de cadeia curta produzidos pela fermentação bacteriana nos nossos intestinos nos ajudam a manter um microbioma intestinal saudável, a melhorar a função hepática e a reduzir a inflamação associada a doenças como o cancro, a doença inflamatória intestinal e a diabetes.
Além disso, muitos alimentos à base de plantas contêm compostos difíceis de digerir, como lectinas, taninos e oxalatos. Os micróbios de fermentação também podem ajudar a decompô-los, aumentando a digestibilidade.
"Os microrganismos conseguem digerir estes compostos mesmo que as pessoas não consigam", disse Bokulich.
Impacto na saúde, presente e futuro
O programa HealthFerm, que decorre até 2026, está a realizar cinco ensaios de intervenção humana em vários países para avaliar o impacto dos alimentos fermentados na saúde.
Os participantes comem uma mistura de diferentes alimentos fermentados ou um alimento fermentado específico. São utilizadas amostras de sangue e de fezes para estudar os efeitos das dietas, em comparação com os participantes que não consomem alimentos fermentados.
Os seus microbiomas intestinais são analisados, observando se produtos como os ácidos gordos de cadeia curta entram na sua corrente sanguínea. Os marcadores de saúde geral também serão verificados.
Alguns dos alimentos utilizados serão novos alimentos criados pela iniciativa de investigação. Os microrganismos presentes na massa lêveda que se considerem ter características desejáveis, como a capacidade de decompor proteínas e fibras, ou de produzir ácidos gordos de cadeia curta e vitamina B, serão incorporados nesses alimentos numa fase posterior.
Produtos fermentados como estes podem contribuir para o programa Alimentação 2030, o quadro político da UE para apoiar a transição para sistemas alimentares sustentáveis, saudáveis e inclusivos.
Courtin afirmou que, mesmo que os alimentos fermentados à base de plantas não apresentem benefícios para a saúde, os produtos fermentados podem contribuir do ponto de vista da sustentabilidade, ajudando na transição para dietas à base de plantas, necessária para combater as alterações climáticas.
Se for possível produzir alternativas à base de plantas para produtos derivados de animais através da fermentação, é provável que isso traga benefícios para a saúde, simplesmente aumentando o consumo de produtos à base de plantas, disse Courtin.
Este artigo foi originalmente publicado na Horizon, a Revista de Investigação e Inovação da UE.