Prata: a perdição dos vikings que foi fundamental para a criação de democracias

Projetos europeus debruçam-se sobre a importância social e económica da prata
Arquivo Pedro Granadeiro / Global Imagens
Os vikings, tradicionalmente retratados como guerreiros barbudos primitivos, tinham um gosto especial por algumas das coisas preciosas da vida. Na Europa, centenas de tesouros de prata enterrados testemunham a sua atração para estes guerreiros quando estes viviam há mais de mil anos.
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"É evidente que adoravam o material", afirma Jane Kershaw, arqueóloga na Universidade de Oxford, no Reino Unido. "É uma das poucas coisas tangíveis que sobreviveram dessa altura".
Histórica rica
A prata já era considerada um metal precioso na altura em que a era viking, que durou 300 anos, começou na Escandinávia, por volta de cerca de 750 d.C. No antigo Egito, já no IV milénio a.C., era mais apreciada do que o ouro e utilizada em moedas pelos lídios, habitantes da Ásia Menor ocidental, no século VI a.C.
A análise do passado da prata ao longo dos tempos oferece uma perspetiva dos movimentos e da evolução das civilizações antigas, bem como das origens do dinheiro. Inclusive, está a começar a transformar alguns pontos de vista antigos sobre os povos do passado.
Enquanto responsável por um projeto de investigação que recebeu financiamento da União Europeia (UE) para avaliar o papel da prata na vida dos vikings, Kershaw questiona a imagem tradicional dos vikings simplesmente como os temíveis invasores da Europa Ocidental.
Afirmou que os vikings foram fortemente influenciados pela Idade de Ouro do Islão, que também teve início no século VIII d.C.
"Encontrámos poucas evidências de que os vikings adquiriam o saque através de incursões violentas no Ocidente", disse Kershaw. "Em vez disso, a procura da prata islâmica foi o grande impulsionador da era viking." O seu projeto de investigação, denominado SILVER, arrancou em março de 2019 e deverá prolongar-se até 2024. Também envolve Stephen Merkel, especialista em ciências da terra na Universidade Livre de Amesterdão, nos Países Baixos, e um especialista em moedas chamado Jani Oravisjӓrvi, da Universidade de Oulu, na Finlândia.
"Camaleões culturais"
Os três investigadores analisaram vestígios de metais, incluindo chumbo encontrado em moedas de prata recolhidas em museus, utilizando lasers para microamostragem.
A análise de diferentes variantes, ou isótopos, do chumbo ajudou a esclarecer a origem dos minérios e, com isso, a fornecer novas informações sobre as origens da era viking.
Segundo a sabedoria convencional, a era viking teve início com um ataque em 793 d.C contra a ilha de Lindisfarne, ao largo da costa nordeste de Inglaterra, e só no século X desenvolveram ligações comerciais com os califados islâmicos. No entanto, uma grande parte da prata islâmica encontrada nos tesouros abrangidos pelas investigações de Kershaw sugere que os vikings podem ter-se dirigido para leste muito antes – por volta de 750 d.C. Em seguida, criaram extensas rotas comerciais globais para leste e para sul, expandindo-se ao mesmo tempo na Europa Ocidental.
"Estas redes comerciais vão do Norte de África a Bagdade, passando pelo Mar Cáspio, pela Ucrânia e pela Rússia, até ao Mar Báltico e à Escandinávia", afirma Kershaw. "Trata-se de um vasto arco de prata que flui num sentido e de bens e pessoas que flui no sentido oposto, já no século IX".
Segundo Kershaw, esta informação revela também que os vikings eram "camaleões culturais".
Para além de dar um novo destaque à expansão oriental dos vikings, Kershaw pretende que os estudos da sua equipa sirvam de base a outras investigações sobre a história das civilizações.
"Espero que faça com que as pessoas reavaliem as fases iniciais das incursões vikings na Europa", disse. "Espero também que as pessoas utilizem os métodos e os apliquem na sua própria área de investigação."
Questões financeiras
É precisamente isso que um outro projeto financiado pela UE está a fazer. Também denominado SILVER, tem vindo a analisar os impérios antigos na região mediterrânea, incluindo a Grécia, Pérsia e Roma, para esclarecer a história do dinheiro e do comércio.
O projeto, que está previsto terminar em março de 2024 após seis anos e meio, é liderado po Francis Albarède, professor e geoquímico na École Normale Supérieure em Lyon, França.
Depois de analisar os isótopos do chumbo e da prata, Albarède defende que a cunhagem de prata em moedas na região mediterrânea abriu o caminho à formação de democracias no século V a.C.
"Penso que a prata foi fundamental na invenção da democracia porque ajudou as pessoas a serem ouvidas e compreendidas", disse.
Vozes mercenárias
Segundo Albarède, há indícios de que o Império Aqueménida da Pérsia utilizou moedas de prata para contratar grandes exércitos de infantaria grega como mercenários.
Afirmou que, depois de estes "hoplitas" regressarem a casa com muito dinheiro, formaram uma classe média que contribuiu para a difusão da democracia.
Os mercenários também redistribuíram a prata pelo Mediterrâneo. Só assim se explicam os excessos do metal nos estados não produtores de prata em torno do mar Egeu e nas áreas costeiras do sul de Itália colonizadas pelos gregos antigos, segundo Albarède.
"Vê-se que a prata está a lubrificar as trocas a longa distância", afirma. A sua equipa descobriu também que as zonas de mineração de prata na antiguidade eram mais vastas do que se pensava. Entretanto, por volta de 480 a.C., as minas de prata de Lavrio, perto de Atenas, estabeleceram a atual capital como a principal potência da Grécia, contribuindo para o seu papel como centro monetário do Mediterrâneo Ocidental.
Lições do passado para o presente
Os investigadores encontraram uma forma de rastrear as origens do metal com isótopos de prata para além dos de chumbo.
Este esforço era anteriormente complicado porque os rácios de isótopos de prata nas moedas diferiam muito pouco para distinguir as minas de origem.
Contudo, quando a equipa de Albarède examinou os minérios antes de serem convertidos em moedas, encontrou diferenças muito maiores. Isto permitiu aos investigadores excluir determinadas minas como origem de prata em massa.
"Os isótopos de chumbo indicam as fontes potenciais de prata e os isótopos de prata indicam-nos de onde esta não pode vir", indica Albarède. "Se juntarmos os dois, ficamos com uma ideia melhor das fontes possíveis".
Para além de Lavrio, as fontes possíveis incluem a regiões de Calcídica, no norte da Grécia, e as ilhas de Tasos, Sifnos e Eubeia.
A sua equipa está também a estudar as razões que levaram as pessoas a cunhar moedas pela primeira vez. A sua opinião é que, graças ao facto de serem resistentes à decomposição, relativamente leves e menos valiosas do que o ouro, as moedas de prata foram cruciais para acelerar as transações.
"A cunhagem de moedas melhora aquilo a que se chama de velocidade do dinheiro e liberta-nos da tirania do peso", afirma Albarède. "Durante crises como a guerra, isso é fundamental."
É da opinião que o passado pode oferecer lições às sociedades atuais, citando as ligações intrínsecas entre os sistemas monetários e comerciais. Por exemplo, os gregos recorreram ao Egito para obter trigo em troca de prata quando os seus solos se degradaram.
Albarède vê outra ligação entre o passado e o presente: a persistência das desigualdades sociais e os seus efeitos desestabilizadores.
"Devemos procurar lições nas catástrofes das sociedades antigas e nas suas conclusões sociais", afirma.
A investigação neste artigo foi financiada pela UE através do Conselho Europeu de Investigação (CEI). Os pontos de vista dos entrevistados não refletem necessariamente os da Comissão Europeia.
Este artigo foi originalmente publicado na Horizon, a Revista de Investigação e Inovação da UE.

