No perfeito dois em um, testámos a última novidade de calçado de trail da ASICS descobrindo os trilhos da Taça de Portugal da modalidade, que decorreu nos Açores.
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Ana Maria irrompe do fundo da estreita rua molhada – choveu, claro – da Ribeira Funda e atira, sem contemplações: “Querem ver a igreja?” A pergunta era retórica. Ana Maria erguia no ar a chave do templo, qual crucifixo a esconjurar o diabo, teve de ser. Era premonitório, deus escreve certo por linhas tortas, aí está. Tínhamos acabado de estacionar o carro alugado num dos poucos lugares de estacionamento à porta da igreja e andávamos nesta cloisa de estivar o indicar ao ar na mais científica técnica de adivinhação: vestiríamos, ou não, o impermeável?
Eu, armada do equipamento completo cedido pela ASICS, nem pestanejei. Fechava já o fecho éclair do casaco Fujitrail bem fechadinho quando Ana Maria nos surgiu, desafiadora. Sem esperar pela resposta, contornou a igreja, entrou pela porta de serviço e logo ouvimos a chave a destrancar a enorme porta de madeira. Abriu-se para um templo simples, arranjado como deve ser a um sábado de manhã numa aldeia recôndita da costa micaelense, que a missa haveria de ser na manhã seguinte, que ali há pároco, ainda que se divida por outros fregueses, uma correria essa coisa das missas de domingo.
“Querem uma santinha?” Não era uma pergunta. Era uma injunção. E Ana Maria só podia saber ao que íamos, artilhados até ao escalpe de roupa técnica último grito. Íamos aos trilhos da Taça de Portugal de Trail, a descobri-los, apenas, que isso das taças é para quem as entenda disputar, nós, deste lado, é mais fazer cutchi cutchi às vacas felizes. Ana Maria chega e enfia-nos nas mãos santinhas da padroeira dali: Nossa Senhora d'Aflição...
Puxo o fecho até ao queixo, cubro a cabeça com o capuz e desata, nesse imediato, a chover. Mal consigo ler a primeira estrofe, “Ó senhora, d'Aflição / Estendei o vosso olhar / Sobre a vossa pátria chão / Sobre o vosso e nosso lar”.
Pois esta pátria nossa, neste pedaço enfiado no meio do Atlântico, é mesmo de invocar à Senhora d'Aflição. Estamos no concelho da Ribeira Grande, que é grande, lá está, e tem chovido, pelo que a terra negra destas ilhas vulcânicas é azeite só. O nosso destino é a Gorreana dos chás, pelo caminho menos óbvio, ou não fosse este o trilho da Taça (que empresta o traçado e organização do Ecologic Trail Run), quase 12 km de sobe e desce, porque terreno chão, aqui, só mesmo no santinho da Senhora d'Aflição.
Está ameno, valha-nos isso, a chuva molha mas não mata. O mal é que molha sempre, foi um festival de mais de três horas (sim, lento, mas tínhamos de tirar fotografias e rir como crianças a escorregar bosta abaixo). Primeira conclusão: o impermeável aguenta, sim, mas pouco. Ao cabo de hora e meia já sentia chuva onde não devia. Não há milagres. Em nome da respirabilidade e da leveza dos materiais, imagino. Portanto, o Fujitrail é um impermeável excelente (e giríssimo, sim) para uma hora de chuva, a preço muito pouco simpático (210 €) para tão rápido uso.
Descemos, fulgurantes, por um trilho que nos põe entre vacas curiosas, que nos espeta com a vista do mar olhos adentro, a beleza mareada da chuva, aos esses pela escarpa, a água a estrelar-se ali em baixo, na rocha negra, e a cair-nos em cima, do céu escuro. Nos pés, as Fuji Speed 2 dizem-me logo duas coisas: zero a ver com a versão inaugural e aderência total. Para já.
O trilho está bom, ainda pouco pastoso, a descida é íngreme mas não escorrega, as curvas aguentam-se na sola desenvolvida pela marca (ASICSGRIP), o conforto tem nota máxima. Assim de repente, estas são as ASICS de trail que melhor me sabem. Acima de tudo porque são extraordinariamente leves (212 gr para um drop perfeito de 5 mm)) e respiráveis: chove como Deus a dá, o pés encharcam e logo o sapato despeja o excesso através da malha técnica. Perfeito. Ao longe, uma curva da costa revela uma cascata, estamos num paraíso inesperado, a enfiar-nos por um caminho de antanho, de moinhos sucessivos, uns atrás de outros, ligados por uma levada, a comunidade unida, comunitária.
E volta a subir, e logo a descer e surge a Praia da Viola, pedras gordas e areia negra, assim como uma praia da Islândia, só que nos Açores quentinhos, ainda. E sobe de novo, entre canas e aquela vegetação tão daqui, curta o suficiente para formar túneis sobre as nossas cabeças, sob os quais chove a dobrar, vale que no corpo temos roupa leve e de rápida secagem, tomara que parasse de chover, isso é que era. Mas damos a mão à palmatória: este equipamento é confortável e sem zonas elásticas a trilhar a pele molhada – e todos sabemos como é fácil fazer lesões de pele quando a roupa encharcada esfrega onde não deve.
O calção (Fujitrail também) tem calça justa e calça larga, vários bolsos (finalmente, um calção de mulher com os bolsos de um calção de homem) e um porte levíssimo. Custa 75 euros. Menos do que modelos de sucesso de marcas conhecidas. E melhores. Já a t-shirt, leve também e com fecho de sentido duplo (e os mesmos 75 euros), passa mais despercebida.
Voltemos ao trilho. Estamos nos Açores. E está a chover. Há dias. E há vacas, porque a chuva não as amedronta. E há pastos e uma prova como deve ser atravessa pastos, porque atravessa tudo o que um lugar tem de belo para mostrar, seja o leito de um rio maravilhosamente cheio, seja um túnel com degraus do tamanho de meio homem, seja uma praia de areia preta, seja um caminho de antanho desfeito em lama.
As Fujispeed são perfeitas no amortecimento (já sobejamente testado pela marca, FF BLAST PLUS) e rápidas quando a placa de carbono consegue ser usada (vá, houve ali um trilho junto ao mar, antes de chegar à Maia, a bela Maia, em que a placa saiu do silêncio e nos fez recuperar o tempo perdido em fotografias). Mas, e a culpa não é delas, não resistem a uma boa papa num pasto carregado de vacas felizes. Nenhuma sapatilha resiste.
Tudo aquilo é papa mole, uma mistura de vida e pasto, de terra e água, os Açores ali, na mais absoluta perfeição. É aí que rimos. E que pensamos nos desgraçados dos atletas que vão passar ali depois dos primeiros, amanhã, num escorrega genial, onde corres ou cais, regra geral corres e cais.
E, de repente, depois de uma curva de asfalto (até aí as Fuji Speed recuperaram tempo, a propulsarem-nos para a frente), surge a pintura perfeita das encostas da Gorreana, como um quadro de Monet, a colina de um verde absoluto riscado, nós a rasgar ali a alta velocidade (obrigada placa de carbono), porque é plano e há aquela coisa de acelerar só porque o fim é ali. O fim de coisa nenhuma. Na verdade, o que está ali é um sítio seco e chá quente gratuito. Sim. Chá a rodos, do bom.
Foi uma aflição? Mais ou menos. Custou, sim, sobre muito e desce muito. Valeram-nos as igrejas para descansar a alma. No dia seguinte, os vencedores da Taça, o açoriano Dário Moitoso e a condeixense Vera Bernardo, admitiriam que sim, que foi duro, mais do que o esperado.
E se Dário, finalmente primeiro ao fim de vários segundos e terceiros lugares, sabia que podia esperar escorregar nos limos das pedras (que recomenda, de resto, porque os Açores são excelentes para a prática da modalidade durante todo o ano, diz ele), Vera tinha o trilho estudado. Só lamenta ir demasiado concentrada na competição para apreciar o que nós apreciámos, paisagens fantásticas.
Vera agradece a oportunidade oferecida pela Associação de Trail Running de Portugal de consolidar o esforço de um ano numa taça organizada numa ilha onde a maioria não viria se não fosse para isso: para correr entre vacas felizes, a escorregar nos pastos e a percorrer encostas de beleza indizível. Bruno Fernandes, organizador do Ecologic Trail, só poderá concordar. Se a prova merece uma final de taça e estes encómios, é porque merece ser feita.
Aqui que ninguém nos ouve, merece. E passa por lugares tão incríveis que a autarquia ameça torná-los melhores ainda: aquela sucessão de moinhos há de ser centro de trail. Promessa do autarca Alexandre Branco Gaudêncio. Este é apenas um curto cantinho de São Miguel. E é absolutamente imperdível, por muito que nos obrigue a invocar, num pasto inclinado entre vacas felizes, a Senhora d'Aflição de Ana Maria.
Nota: os produtos foram fornecidos pela marca. As Fuji Speed têm PVP recomendado de 180 euros, menos que o impermeável (250 euros), não utilizam materiais de origem animal e têm atacadores de génio, com relevos que garantem que os laços não se desfazem. Obrigada! Na primeira versão, os atacadores eram quicklace e muito pouco práticos. Outra nota: esta versão é muito mais correta no tamanho. As anteriores eram claramente apertadas.