Relação revoga condenação em primeira instância. Arguido criticou duramente no Facebook presidente da Câmara da Feira por tirar deficientes de instituição para acolher idosos com covid.
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O Tribunal da Relação do Porto absolveu um engenheiro civil de ter difamado o presidente da Câmara de Santa Maria da Feira, Emídio Sousa, ao sugerir que este perfilhava a ideologia nazi. O edil sentiu-se "humilhado e vexado" com uma publicação feita no Facebook pelo arguido, que, em primeira instância, foi condenado pelo crime de difamação agravada, numa pena de multa de 1350 euros e numa indemnização de 800 euros.
Em causa estava um texto em que o engenheiro criticou o autarca por ter retirado doentes com deficiência da Casa Ozanam, um projeto da Sociedade de São Vicente de Paulo que apoia pessoas desvalidas, para dar lugar a idosos com covid-19. "Sabiam que para isso ser possível há utentes da Casa Ozanam portadores de deficiência "despejados" num pavilhão e que esse não tem recursos nem condições adequadas?", questionou o engenheiro. Na base da revolta estava a sua "vivência pessoal" e o seu "ativismo cívico" em relação à esclerose lateral amiotrófica, doença de que faleceu o pai, de quem foi cuidador.
Comparado a Goebbels
Sabiam que os nazis consideravam doentes físicos e mentais inúteis à sociedade e, portanto, inferiores? Sabiam que dá vontade de chamar Joseph Goebbels [ministro da propaganda de Hitler] a cada uma dessas pessoas que participaram na promoção de uma solução hedionda?
Na publicação, de 27 de junho de 2020, o arguido acusou a autarquia de fazer "alta propaganda política" e também criticou por ter dito que se tratava de uma medida humanista. Mas foi mais longe: "Sabiam que os nazis consideravam doentes físicos e mentais inúteis à sociedade e, portanto, inferiores? Sabiam que dá vontade de chamar "Joseph Goebbels" [ministro da propaganda de Hitler] a cada uma dessas pessoas que participaram na promoção de uma solução hedionda? Do presidente da Câmara não esperaria muito, uma vez que é a mesma pessoa que está no centro de enormes nojeiras. Isto para não referir outros casos que demonstram o seu calibre moral", concluiu.
Ao julgar o processo, o Tribunal da Feira entendeu que o arguido atacou a "honra" e "consideração" do autarca ao referir-se ao seu "calibre moral" e ao associá-lo aos nazis e a Joseph Goebbels.
"Para qualquer homem médio, essas frases só podem traduzir a ideia de que o demandante favorecia o desmerecimento das pessoas portadoras de deficiência, concorrendo para práticas associadas a depuramento de raça e genocídio, o que não pode deixar de ser considerado ofensivo da sua honra e consideração", argumentou o tribunal de primeira instância, condenando o arguido por difamação agravada.
Políticos criticáveis
Mas o engenheiro recorreu, alegando que a liberdade de expressão devia prevalecer sobre o direito à honra e que as expressões, embora "contundentes, desagradáveis e agressivas", visavam a atuação de Emídio Sousa enquanto autarca, não como pessoa. "A atividade política e administrativa está sujeita à suscetibilidade de ampla crítica, em relação à qual é muito restrita a margem de discricionariedade do Estado nos limites à liberdade de expressão, sendo que os agentes envolvidos nessa atividade devem tolerar essa crítica em termos mais intensos do que o cidadão comum", argumentou, com a concordância do Ministério Público da Relação.
Esta concordou que o arguido proferiu expressões "agressivas, descorteses e eventualmente exageradas" e que foi "um pouco mais longe ao afirmar que todas as atuações em causa serão reveladoras do baixo "calibre moral" do ofendido". Mas os desembargadores Pedro Pato, Eduarda Lobo e Castela Rio frisaram que deveriam ser corretamente interpretadas, sem ignorar a "particular sensibilidade" do arguido em relação à saída dos doentes da Casa Ozanam.
"Com o uso dessas expressões, o que se pretende é a crítica a tal atuação, não à pessoa do ofendido", concluiu o acórdão, de 22 de fevereiro, admitindo que neste caso "de fronteira" é difícil dizer que "o arguido atuou com consciência de ilicitude e não convencido de que a sua atuação estava coberta pelo direito de livre crítica da atuação em causa".
Arguido
Em tribunal manteve o que escreveu
Em audiência de julgamento, o arguido, sem antecedentes criminais e a exercer a profissão de engenheiro por conta de outrem, manteve o teor da publicação que fez no Facebook.
Foi cuidador do pai e agora cuida da mãe
O arguido foi cuidador do pai, que faleceu em 2003 com esclerose lateral amiotrófica, uma doença neurológica degenerativa rara em que, progressivamente, os músculos deixam de funcionar. Há longos anos, cuida da mãe que padece de lúpus, doença autoimune que causa lesões na pele.