Quatro meses depois de, a 18 de junho, o automóvel em que seguia o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, ter atropelado mortalmente um trabalhador na A6, entre Estremoz e Évora, o inquérito ao acidente continua em segredo de justiça, sem que o advogado da família da vítima da vítima perceba porquê.
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"Neste caso, o segredo de justiça só pode ser decretado para proteger a inação ou a incompetência dos investigadores. Não vejo em que é que o segredo de justiça pode ajudar a investigar um acidente que degenerou num atropelamento", sublinha, ao JN, José Joaquim Barros, que tenciona requerer, assim que "haja condições", o levantamento daquele instrumento. "Nada sabemos das diligências efetuadas, incluindo se o Nuno [Santos] foi ou não autopsiado, e se foi ou não pedida uma peritagem ao carro", lamenta o causídico.
A Procuradoria-Geral da República, questionada pelo JN, há duas semanas, sobre a razão de o inquérito ter sido sujeito a segredo de justiça, não deu qualquer explicação.
figuras VIp mais protegidas
Desde setembro de 2007 que o segredo de justiça - que impede que arguidos e/ou pessoas externas ao inquérito conheçam o seu conteúdo - é a exceção e não a regra no processo penal português. Mas, logo em janeiro de 2008, o então procurador-geral da República, Fernando Pinto Monteiro, ordenou aos magistrados do Ministério Público que pedissem ao juiz de instrução a aplicação do mecanismo no início de todas as investigações de, entre outros crimes, branqueamento de capitais, associação criminosa ou terrorismo. Para tal, deveriam invocar, tal como a lei permite, "os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais".
Catorze anos depois, o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), Adão Carvalho, admite - sem se referir ao caso concreto de Eduardo Cabrita e falando especificamente do conhecimento do processo por pessoas externas ao processo, como os jornalistas - que "há algumas situações em que, de facto, se vai além daquilo que deveria ser ou que está previsto no Código do Processo Penal como sendo o correto". "Às vezes, porque estão em causa determinadas pessoas, até pela perturbação que poderia gerar a divulgação dos factos, leva-se a ser demasiado cauteloso quando se calhar não se justifica", acrescenta, ao JN, o líder do SMMP.
Para o magistrado, é preciso não esquecer que o "controlo pela própria comunidade dos processos" é uma "característica do Estado de Direito". "A regra deve ser permitir a consulta dos processos [por quem tem interesse legítimo em fazê-lo, como os jornalistas]. Não acho que deva ser restringida só a bel prazer de quem decide, ou só porque em causa está a pessoa "x" ou "y"", conclui Adão Carvalho.
Francisco Teixeira da Mota, especialista em Direito da Comunicação, classifica como "muito amplo" o critério de aplicação do segredo de justiça e diz que esta "é difícil de sindicar". "O prejuízo dos direitos é um conceito muito vasto. Quais direitos? Não seria mais importante o direito à informação do que esses direitos? Há muito que se pode discutir à volta disso", defende, sem se pronunciar sobre o inquérito ao atropelamento na A6.
O advogado da família do trabalhador atropelado pelo carro do ministro Cabrita contesta abertamente o segredo de justiça do respetivo inquérito. Para José Joaquim Barros, o segredo não faz sentido num caso em que "a investigação é uma perícia ao carro, a autópsia à vítima e ouvir testemunhas". "A minha opinião geral sobre o segredo de justiça é que os magistrados preferem manter as coisas em segredo de justiça, mesmo quando não se justifica. E, neste caso, não se justifica", remata.
Atropelamento mistério na A6
Nuno Santos, de 43 anos e pai de duas meninas, foi atropelado mortalmente a 18 de junho, na A6, entre Estremoz e Évora, por um carro conduzido por um motorista do ministro da Administração Interna. Eduardo Cabrita seguia no banco traseiro. Residente em Santiago do Escoural, concelho de Montemor-o-Novo, Nuno Santos integrava uma equipa de uma empresa contratada pela Brisa, a subconcessionária da autoestrada, para fazer trabalhos de manutenção da via. O atropelamento ter-se-á dado quando Nuno Santos se deslocou ao separador central, em circunstâncias ainda por esclarecer. Apesar de o inquérito estar em segredo de justiça, várias entidades pronunciaram-se já sobre o caso. O Ministério da Administração Interna e a Brisa desmentiram-se mutuamente quanto à existência, ou não, de sinalização dos trabalhos. E a GNR asseverou, a 1 de julho, que não recebeu "qualquer "ordem superior" para impedir ou condicionar quaisquer diligências relacionadas com a investigação ao acidente". À data, estava "a desenvolver, nos termos da lei, todas as diligências inerentes a um processo de investigação de um acidente de viação com vítimas mortais", acrescentou. Uma das suas tarefas mais sensíveis é (ou foi) a determinação da velocidade a que circulava a viatura oficial do ministro no momento do acidente.
Outros casos
Joe Berardo e CGD
No inquérito-crime onde são investigadas as relações entre a Caixa Geral de Depósitos e Joe Berardo, o Ministério Público do DCIAP não revelou a identidade deste empresário madeirense nem a do seu advogado quando anunciou a detenção de ambos, mas o tribunal que os interrogou, para aplicação de medidas de coação, fá-lo-ia apenas um dia depois. "No inquérito investigam-se (...) financiamentos concedidos pela CGD e outros factos conexos, suscetíveis de configurar (...) administração danosa, burla qualificada, fraude fiscal qualificada, branqueamento e, eventualmente, crimes cometidos no exercício de funções públicas", limitara-se o DCIAP a anunciar, justificando-se com o segredo de justiça. Parte dos factos fora descoberta, em 2019, na comissão parlamentar de inquérito à Caixa.
Processo das barragens
A investigação criminal que visa, segundo o DCIAP, "o negócio da transmissão de seis barragens do grupo EDP para o consórcio francês integrado pela Engie, Crédit Agricole Assurances e a Mirova (Grupo Natixis)" é outro dos processos sujeitos a segredo de justiça. O inquérito por fraude fiscal - crime não abrangido pela diretiva do tempo de Pinto Monteiro (ver texto principal) - foi tornado público a 6 de julho, na sequência de uma operação de buscas. Mas os factos já tinham sido denunciados publicamente, meses antes, pelo Movimento Terras de Miranda
Luís Filipe Vieira
O inquérito que, em julho, tirou Luís Filipe Vieira da presidência do Benfica é outro processo em segredo de justiça. A 7 daquele mês, quando Vieira, o seu filho, um sócio e um agente desportivo foram detidos, o Departamento Central de Ação e Investigação Penal (DCIAP) do Ministério Público emitiu uma nota em que mencionou apenas que, em causa, estava a investigação a "negócios e financiamentos em montante total superior a cem milhões de euros, que poderão ter acarretado elevado prejuízos para o Estado e para algumas sociedades". Mais uma vez, a identidade dos arguidos só seria confirmada pelo juiz do tribunal que onde foram ouvidos, para aplicação de medidas de coação. Estão em causa crimes, entre outros, de branqueamento de capitais.
Perguntas e respostas
Quem pode decretar o segredo de justiça?
A decisão é sempre do juiz de instrução e não pode ser objeto de recurso. Pode ser decretada por iniciativa do magistrado ou a pedido do Ministério Público, do arguido, do assistente ou do ofendido no inquérito.
Com que fundamento pode ser aplicado?
A publicidade do processo é a regra e, por isso, o segredo de justiça só pode ser instituído, segundo o Código de Processo Penal, em nome dos "interesses da investigação" ou dos "direitos dos sujeitos processuais".
De que forma protege a investigação?
O segredo de justiça interno, que impede o arguido de aceder parcial ou totalmente ao conteúdo do inquérito, permite, por exemplo, esconder dos visados que têm os seus telefones sob escuta ou que serão alvo de buscas.
Só há segredo de justiça interno?
Não. O segredo de justiça pode também aplicar-se a pessoas externas à investigação, nomeadamente jornalistas. Proíbe, por exemplo, a "divulgação da ocorrência de ato processual ou dos seus termos".
Há alguma exceção à proibição?
Só por parte pelas autoridades judiciárias. Os esclarecimentos públicos podem ser prestados, sem prejudicar a investigação e para repor a verdade, a "pedido de pessoas publicamente postas em causa" ou "para garantir a seguranças de pessoas e bens ou a tranquilidade pública".
E se não for decretado segredo de justiça?
É permitida a "narração dos atos processuais, ou a reprodução dos seus termos, pelos meios de comunicação social" e a "consulta do auto e obtenção de cópias, extratos e certidões". O debate instrutório e o julgamento são sempre públicos. A exceção são os crimes sexuais, para proteção da vítima.