O Ministério Público considerou, esta segunda-feira, que não ficaram provados os crimes de rapto, roubo, ameaça e sequestro que teriam vitimado duas crianças, a avó destas e o seu companheiro, em Fânzeres, Gondomar. Dos nove arguidos do processo, quatro permaneciam em prisão preventiva.
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Os quatro arguidos em preventiva foram libertados ao final da manhã, depois de, nas alegações finais, o procurador ter pedido uma pena máxima de um ano de prisão para dois deles, por dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, e a absolvição dos outros dois. Estavam presos desde 12 de abril do ano passado. Um dos advogados já anunciou que irá patrocinar uma ação contra o Estado. A sentença será conhecida a 15 de maio.
O caso remonta a 6 de fevereiro de 2024. Segundo a acusação, os arguidos invadiram a casa das vítimas, agrediram-nas, cortaram o cabelo à avó das crianças e raptaram os dois netos, que estavam à guarda da mulher. Entre os agressores estariam a mãe das crianças e dois irmãos, todos filhos da vítima. Nesse dia, os três gravaram um vídeo, congratulando-se por já terem consigo as crianças e mostrando o cabelo da mulher, que terão agredido.
Em abril do ano passado, uma operação da PJ deteve nove suspeitos. Os três irmãos e o companheiro da mãe dos meninos ficaram em prisão preventiva, outros três ficaram em prisão domiciliária e dois em liberdade. Foram todos acusados, em coautoria, de dois crimes de rapto, dois de sequestro, dois de roubos, dois de ofensas à integridade física qualificada, dois crimes de ameaça e um crime de dano. Um dos arguidos está também acusado de detenção de arma proibida.
Ofendidos em silêncio e com contradições
Em tribunal, a acusação sofreu um forte revés com a não colaboração dos alegados ofendidos. A avó recusou-se a testemunhar por não querer incriminar os filhos. Também os dois menores, alegadamente, alvo de rapto, optaram por não falar. Já o outro ofendido explicou que apenas identificou alguns dos suspeitos porque a avó dos meninos assim o indicou.
Hélder admitiu que se envolveu fisicamente com os dois filhos da companheira, Patrícia, mas que foi ele a dar o primeiro murro. E que o telemóvel que se queixava de ter sido roubado afinal tinha caído no sofá. As contradições mereceram-lhe a extração de uma certidão e a promessa de um processo por falsas declarações.
Sem provas de quase todos os crimes
Esta manhã, o procurador do Ministério Público admitiu que não fora feita prova do sequestro, do roubo, da ameaça e que o ofendido desistira do crime de dano. Restava o crime de posse de arma proibida – uma munição –, pelo que o arguido Nuno deveria ser alvo apenas com uma pena de multa, e as agressões à avó.
“Sobra o que é a violência exercida sobre a ofendida, na modalidade particularmente cruel e acintosa do corte de cabelo. Aconteceu de facto um ato censurável e particularmente indecoroso dos filhos atacarem a mãe e não contentes com isso amplificaram a ação, propagando-a com um vídeo. Podia ser retratado como um crime de honra (…), mas depois ninguém admite que o fez”, afirmou o procurador.
“Sabemos que Domingos e Luciano lá estiveram e há o vídeo”, resumiu o procurador pedindo uma pena de prisão efetiva para os dois, mas sem exceder um ano, que “infelizmente é mais do que o tempo que já estão presos”.
"Vídeo não é de um crime. É do relato de um crime"
O advogado de Luciano e Domingos recorreu ao famoso quadro do pintor surrealista Magritte e frisou que um desenho de um cachimbo não é um cachimbo. “Nem tudo o que parece é. O vídeo que temos no processo não é de um crime. É um vídeo onde se relatam factos que alegadamente podiam ser um crime”, sustentou Aníbal Pinto.
O advogado afirmou que a avó dos meninos tinha todo o direito de ter saído de casa e iniciar uma nova relação "prematura e de Facebook", mas não tinha o direito de levar os netos, que tinham sido confiados aos dois avós, para uma residência onde não se sabia se tinha condições. Lembrando um vídeo anterior onde os irmãos apelavam à devolução “a bem” dos meninos, Aníbal Pinto defendeu a existência de um “estado de necessidade absolutamente gritante” que excluirá qualquer responsabilidade penal.
Voltando ao quadro de Magritte, o advogado reiterou que o tribunal desconhece o que se passou no interior da casa. “Há um vídeo nojento, desnecessário e censurável, mas onde nunca se diz que agrediram a mãe e lhe cortaram o cabelo”, descreveu. “Se fossem condenados a um ano, ainda tinham lucro porque já estão detidos há mais de um ano por causa de um vídeo de fanfarronice que todos desprezamos”, concluiu Aníbal Pinto, pedindo a revogação da prisão preventiva, uma vez que já não haverá perigo de perturbação de inquérito, nem de fuga.
Também o advogado de Estrela, companheiro da mãe das crianças, acompanhou as alegações do Ministério Público salientando que a prova produzida foi “muito contraditória, com pouca ou nenhuma credibilidade”. Já o vídeo é a “ilustração de uma determinada realidade que ficamos sem saber verídica ou não”, considerou Ricardo Esteves.
"A doutora não entende. Eu tenho de dizer que fiz"
A advogada de Patrícia admitu que, quando viu o vídeo, foi a primeira a condenar aquela pessoa, mas, depois de consultar o processo e as declarações, viu que “não havia uma referência a uma mulher, uma referência à Patrícia”. Recordou que encontrou a arguida “totalmente perdida e de olhar vazio” e que lhe disse: “a doutora não entende, eu tenho de dizer que fiz. O medo custou-lhe um ano de prisão, mas permitiu-lhe hoje chegar aqui e dizer que não o fez”, acrescentou Andreia Silva Pinto, considerando que “a prova produzida, além de escassa foi totalmente contraditória”, com o “ofendido a chegar a pedir desculpas a alguns dos alegados agressores”.
“Quais os indícios ou prova relativamente à arguida Patrícia? Nenhuns. Só está no processo por ter feito um vídeo. Seria uma prova rainha se do mesmo constassem as agressões, mas só temos declarações a dizer que fez. Não existem provas do cometimento dos crimes”, defendeu Andreia Silva Pinto, pedindo igualmente a revogação da prisão preventiva da sua cliente.
A advogada de Carlos e José foi muito crítica para com o modo como foi feita a acusação num “processo injusto”, “com base num depoimento mentiroso e altamente influenciável”. O Ministério Público “sabia que isto podia acontecer” e “devia aplicar às testemunhas que mentem pena igual às pessoas que aqui estão para perceberem o que elas sofrem”, defendeu Luísa Macanjo.
Também Carlos Duarte criticou duramente a acusação do Ministério Público, salvaguardando o “trabalho meritório” do procurador que esteve em tribunal e a forma frontal como avaliou a prova. “Vem salientar o que já venho dizendo: é hora dos senhores procuradores do Departamento de Ação e Investigação Penal (DIAP) virem ao Tribunal de São João Novo defender as obras de arte deles que são apelidadas de acusação”, apelou o advogado.
"Isto não engrandece ninguém"
“Andámos um ano e meio com despesas incalculáveis e assistimos a isto. E isto não engrandece ninguém”, censurou Carlos Duarte, lembrando que foi forçado a uma inversão do ónus da prova para mostrar que o seu cliente não podia ter estado no local do crime. O advogado criticou a pressão mediática colocada sobre os órgãos de polícia criminal e dos procuradores que, mesmo não havendo indícios, pelo contrário, prosseguem com os processos porque “depois no julgamento logo se vê”.
“Toda a gente sabia o que ia acontecer, mas, entretanto, o meu cliente perdeu o emprego. Pela primeira vez na minha vida, faço questão de patrocinar esta ação contra o Estado. Muito bem esteve o procurador e os juízes. Muito mal esteve a justiça e muito mal esteve o procurador que acompanhou a investigação”, concluiu Carlos Duarte.
Na sessão anterior, a juíza já havia revogado a medida de coação de prisão domiciliária que fora aplicada a três dos arguidos. Esta segunda-feira, revogou a prisão preventiva dos quatro arguidos que a ela estavam sujeitos por considerar que já não se justificava a sua aplicação. Não há perigo de perturbação do processo, pois as audiências testemunhais já terminaram e a pena pedida pelo MP é inferior ao tempo já cumprido, explicou. Assim, todos os nove arguidos poderão aguardar em liberdade o desenrolar do processo. A leitura da sentença foi marcada para as 14 horas do dia 15 de maio.