Adoção ilegal de bebés: "Sabíamos que estávamos a ultrapassar a lei, mas nunca pensámos em tráfico humano"
“Senti que me morreu um filho”. É com esta frase que Hélder Dias descreve, ao JN, o momento em que teve de entregar a bebé trazida ilegalmente do Brasil, pelo marido, aos inspetores da PJ.
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O sentimento de perda deixou-o sem chão quando, no dia 5 de dezembro de 2023, a campainha tocou e, instantes depois, era confrontado com o crime cometido. Hélder cuidava da criança, na residência da família, em Sobrado, e o mundo há muito sonhado ruiu de imediato. “O momento mais feliz da minha vida foi quando peguei na bebé no aeroporto, mas o mais difícil foi quando a entreguei aos inspetores”, garante.
O empresário, de 46 anos, não se esconde e admite que, tal como o marido Márcio, sabia estar a ultrapassar os limites da lei, no entanto nega ter pagado para ficar com os bebés e confessa que nunca pensou em ser suspeito de tráfico de seres humanos. Alega ainda que tudo foi feito em nome de um bem maior: “a nossa intenção sempre foi salvar as crianças e concretizar o desejo de constituir família”.
Adoção deixou de ser hipótese na primeira reunião na Segurança Social
Para o casal, “a ideia sempre foi ter três filhos” e, com esse objetivo, formalizou o pedido de adoção. Todavia, logo na primeira reunião com elementos da Segurança Social perceberam que aquele era um caminho sem fim. “A assistente social disse-nos que seria muito difícil conseguirmos a adoção, em função da nossa idade e de sermos um casal homossexual. O processo morreu logo ali”, recorda.
O sonho, esse, permaneceu vivo e foi em busca dele que “Márcio encontrou, no Facebook, um advogado brasileiro a anunciar um serviço de inseminação artificial através da 'barriga solidária'”, projeto no qual mulheres brasileiras cedem, gratuitamente, o útero para gerar uma criança para outras famílias. Depois, um curto contacto foi o suficiente para levar o casal ao Brasil. “O advogado apresentou-nos a Márcia [que serviria de barriga solidária] e fomos a uma clínica fazer exames. Ficou tudo acertado”, lembra.
Tempos depois, chegou a Portugal a informação de que duas tentativas de inseminação artificial, realizadas num “processo caro, mas totalmente legal”, falharam e o casal suspeitou que estava a ser burlado. Trocou de clínica, a 'barriga solidária' engravidou, mas, ao quinto mês de gestação, deu-se um aborto espontâneo.
“Nunca pagámos às mulheres”
A esperança esmorecida renasceu quando o mesmo advogado brasileiro apresentou uma segunda solução. “Sugeriu-nos o que chamou de “adoção à brasileira”, que consistia em ficar com o recém-nascido de uma jovem grávida, que pretendia dar a criança para a adoção”, descreve Hélder que, juntamente com Márcio, conheceu Ana Silva, de 21 anos, no grupo de Facebook “Bios e adotantes”, que conta com a participação de várias grávidas brasileiras à procura de pais para os seus filhos.
Através do WhatsApp, Ana aceitou a proposta dos portugueses, mudou-se para Valinhos, em São Paulo, e levou a gravidez até ao fim com o acompanhamento de uma amiga do casal. “Nunca pagámos à mulher, nem ela nos pediu dinheiro. Só suportamos as despesas com a gravidez e com o bem-estar da mãe. Ela dizia que se não ficássemos com o bebé iria abandoná-lo”, assegura Hélder.
Neste ponto, e apesar das garantias de legalidade dadas pelo advogado, Márcio e Hélder tinham consciência do que estavam a fazer. “Sabíamos que estávamos a ultrapassar a lei. Mas nunca pensámos no crime de tráfico de seres humanos”, confidencia o segundo.
Vidas desfeitas
A bebé nasceu em 28 de outubro de 2023, foi registada com o nome Margarida por Márcio Mendes e, com apenas 19 dias de vida, voou para Portugal. Já com a criança em casa, o casal soube, pelo mesmo grupo de Facebook, que uma outra grávida brasileira não desejava ficar com o bebé e decidiu arriscar uma vez mais. “Pensámos que era a única oportunidade de ter mais um filho”, justifica, agora, Hélder Dias.
O marido viajou para o Brasil sete dias depois de lá ter saído, registou Eduardo como seu filho e continuou a visitar o bebé no Hospital da Santa Casa de Valinhos, onde foi detido em 4 de dezembro. “O médico que fez os partos estranhou o facto de o Márcio ser o pai de dois bebés, de duas mães diferentes, e fez a denúncia”, afirma o homem conformado com o seu próprio destino.
“Acabou o sonho de ser pai. Só quero o Márcio de volta a Portugal para que possamos continuar com as nossas vidas. Têm sido momentos muitos difíceis, as nossas empresas fecharam e estamos a viver das poupanças”, assume quem continua a cuidar da sogra, de 92 anos.
Cronologia
2010 – Hélder Dias e Márcio Mendes casaram, após dez anos de uma relação amorosa.
2020 – Casal formalizou o pedido para adotar uma criança em Portugal. Na primeira reunião, a assistente social garantiu que dificilmente o desejo de serem pais seria concretizado e estes começaram a procurar, online, alternativas no estrangeiro.
2021/2022 – Conheceram, através do Facebook, o projeto “Barriga Solidária”, no qual mulheres brasileiras aceitam ser sujeitas a um processo de fertilização in vitro. O casal deslocou-se ao Brasil e realizou três tentativas de fertilização, em duas clínicas diferentes, pagando cerca de 3500 euros por cada uma delas. Só a terceira tentativa resultou, mas a mãe acabaria por sofrer um abordo espontâneo aos cinco meses de gestação.
Agosto de 2023 – Advogado sugeriu ao casal a “adoção à brasileira”, método ilegal em que grávidas abdicam dos bebés e aceitam registar o recém-nascido com o nome de um homem que não é o pai biológico. Uma amiga brasileira de Márcio Mendes e Hélder Dias encaminhou-os para um grupo de Facebook chamado “Bios e adotantes”, no qual conheceram Ana Silva, grávida brasileira, de 21 anos. Por WhatsApp, Márcio ofereceu-se para ficar com o bebé e a proposta foi aceite.
24 de outubro de 2023 – Márcio Mendes viajou para São Paulo, Brasil, e acompanhou o parto, ocorrido no dia 28. No dia seguinte, Márcio registou a recém-nascida como sua filha e, em 10 de novembro, obteve o passaporte em nome de Margarida. Pai e “filha”, com 19 dias de vida, regressaram a Portugal em 16 de novembro.
23 de novembro de 2023 – Márcio Mendes volta ao Brasil. Já em casa, teve conhecimento que havia uma segunda grávida disposta a abdicar do filho e, pelo mesmo método e meios, combinou os pressupostos para adotar o bebé, que nasceria em 21 de novembro e que foi abandonado pela mãe, Juliana Almeida, no hospital logo após o parto.
24 de novembro de 2023 – Márcio Mendes registou Eduardo como seu filho no Cartório do Registo Civil de Pessoas Naturais de Itatiba. O bebé continuou internado no Hospital da Santa Casa de Valinhos, em São Paulo, devido a problemas de saúde.
4 de dezembro de 2023 – Márcio Mendes foi detido no hospital quando visitava o recém-nascido, na sequência de uma denúncia feita pelo médico que realizou os dois partos. Ficou em prisão preventiva durante oito meses, até ser condenado a cinco anos e dois meses de prisão.
5 de dezembro de 2023 – A pedido das autoridades brasileiras, a PJ localizou em Sobrado, Valongo, Margarida, a bebé trazida do Brasil. Hélder Dias foi detido e a bebé institucionalizada num centro de acolhimento.
13 de janeiro de 2025 – Procuradora decretou a suspensão provisória do processo relativamente a Hélder Dias e a decisão foi ratificada pelo juiz quatro dias depois.
20 de março de 2025 – Polícia Federal veio a Portugal resgatar Margarida e levou a criança para o Brasil