António Cluny: "Não tem que acontecer nenhuma orientação em estilo paternalista"
António Cluny, procurador-geral adjunto e membro nacional da Eurojust, é um dos subscritores da petição pela simplificação das peças processuais.
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António Cluny, procurador-geral adjunto e membro nacional da Eurojust, a agência europeia para a cooperação entre estados no combate ao crime organizado transnacional, faz parte do grupo de advogados, juízes e procuradores que há dias lançaram uma carta aberta apelando à simplificação das peças processuais, na linguagem e extensão. Diz que os juízes se transformaram em comentadores e que a solução pode passar por uma norma específica. Apela ainda a uma reorganização das tarefas do Ministério Público para contrariar a falta de recursos e não questiona as intervenções hierárquicas, desde que feitas por escrito.
É um dos subscritores da petição a favor de peças processuais mais curtas e simples. Como é que se alcança tal objetivo?
Há várias soluções. Há a via legal e há a via cultural, educativa. Ambas são difíceis. Legalmente é difícil imaginar um artigo que diga que as peças processuais não podem ter mais do que x páginas. Culturalmente, poderia iniciar uma nova geração através dos Centros de Estudos Judiciários.
A petição usa mesmo uma expressão bastante coloquial, que há muita “palha”. De onde é que nasce essa prolixidade? A linguagem da justiça é propositadamente hermética para ser mais inacessível ao cidadão comum?
A questão do aumento do número de páginas das acusações, das petições, das decisões, das sentenças, dos acórdãos, resultou como um efeito contrário daquilo que se esperava da introdução de computadores. Quando as pessoas tinham de escrever as acusações ou as sentenças à mão, tinham um esforço muito maior de concisão. Depois há outros aspetos que levaram a este tipo de peças processuais que temos hoje e que têm a ver com a facilidade do copy-paste.
Como poderia ser enquadrada uma solução pela via legal?
Quando trabalhei no Tribunal de Contas, as petições tinham de ser articuladas, e à frente de cada artigo tinha de se pôr a prova. Isto é, não havia espaço para palha. Para cada artigo tínhamos de pôr um facto e tínhamos de indicar qual era a prova do facto que estávamos a concretizar. Esse sistema guiava-nos e obrigava-nos a disciplinar completamente o nosso discurso. Não havia espaço para meter ou citar doutrina.
Pode haver uma fixação de orientações nesse sentido?
Se for caso disso, pode haver, efetivamente, uma medida legal. Por exemplo, na Argentina, onde estive várias vezes, as peças processuais não podem ter mesmo mais do que x páginas. No Tribunal de Justiça da União Europeia também já me contaram que acontece isso. Obrigam a um esforço de concisão enorme. Eu já vi acusações com notas de rodapé com citação de doutrina. Isto é curioso, porque as acusações são para fixar factos que se quer levar ao conhecimento dos juízes. Aliás, Portugal é, nesse aspeto, um país relativamente peculiar. Na maioria dos países é a doutrina que comenta a jurisprudência e nunca a jurisprudência que vai invocar a doutrina. Aquelas citações de professores universitários, na maioria dos países não se vê nas peças processuais dos tribunais, seja do Ministério Público, seja do juiz.
Sabe que alguns dos subscritores desta petição são eles próprios autores de muita palha?
Pois, o sistema é viciante, não é? Temos de mudar a cultura judiciária. A cultura judiciária é que os tribunais não citam doutrina, a doutrina é que comenta a jurisprudência. Isto esvaziaria logo imenso.
Isso pode ser feito também por via das avaliações? Haver aqui um papel dos conselhos superiores das magistraturas?
Não tenho dúvidas nenhumas de que uma reflexão levada a cabo em qualquer dos conselhos superiores das magistraturas, e veiculada aos juízes como uma recomendação, porque eles não estão sujeitos a nenhuma orientação hierárquica, mas para o Ministério Público seria perfeitamente viável. Hoje não vivemos isolados no mundo, devíamos talvez estudar outras situações. Vejo aqui as sentenças na Eurojust, de outros países, são muito mais sintéticas do que as nossas.
Quais são os bons exemplos que devemos seguir?
Temos exemplos que devemos seguir e também temos alguma coisa para ensinar. Na maioria dos países, a forma de acusar é muito mais direta, o que simplifica imenso o julgamento e a aproximação das partes à verdade. Mete-me um pouco impressão, sempre que é preciso enviar um pedido de apoio, que os nossos juristas portugueses magistrados enviem peças descomunais, que os nossos colegas na Eurojust ficam a olhar para aquilo. Além de se pagar muito caro a tradução, torna pouco legível e pouco compreensível por vezes o que se pretende.
Os juízes estão a transformar-se em comentadores?
Os juízes, o Ministério Público não tanto, porque as peças processuais que traduzem o exercício das suas funções não se prestam tanto a isso, mas mesmo nessas peças processuais do Ministério Público também há a tentação de ensinar a melhor doutrina a aplicar em vez de se versarem mais para a boa descrição dos factos.
Também há necessidade de simplificação no setor da Justiça noutros níveis, nomeadamente procedimentais?
Temos de reequacionar alguns modelos e pensar que - agora vou dizer uma frase que se calhar alguns colegas meus me irão sacrificar - não é lançando sempre mais magistrados para cima do fogo que se resolve o problema. A simplificação processual e a coordenação da estrutura de carreira das magistraturas com essa simplificação têm de ser permanentemente atualizáveis. Não podemos ir modificando sempre o código e as leis de processo e não alterarmos imediatamente a organização daqueles que têm de lidar com essas variantes.
O tema leva-nos também aos megaprocessos. Temos dificuldade em partir os processos em Portugal?
Temos dificuldade, é uma moda recente. Aliás, tem alguma sustentação legal a teoria de que os processos têm de abarcar todos os crimes que um determinado arguido praticou durante um determinado período, mas o próprio Código permite que assim não seja. Se calhar era a altura do legislador clarificar essa situação.
É preciso uma mudança legislativa? Não pode haver essa prática pelos próprios procuradores?
É verdade, mas com uma medida legislativa a questão resolvia-se de vez. Não podemos intervir na maneira como cada procurador pensa desenhar a sua peça processual, podemos aconselhar, poderá haver orientações hierárquicas internas, mas, como se sabe, hoje em dia também se questiona muito essa possibilidade. O Eurojust nesse aspeto permite-nos ter uma visão muito mais abrangente dos sistemas processuais de outros países.
O tema da morosidade é transversal na Europa ou é particularmente grave em Portugal?
O problema da morosidade é transversal às justiças. Tem várias razões, uma delas foi aquela que começámos por analisar, o tamanho das peças processuais, outro tem a ver com o quadro de magistrados, outro ainda tem a ver com o tipo de funções que são atribuídas à magistratura. Eu acho que tínhamos que repensar as funções, por exemplo, do Ministério Público, porque estão incumbidas muitas funções que não são absolutamente necessárias, outros atores poderiam intervir nessas funções.
A que tipo de funções se refere?
Por exemplo, a defesa jurídica do Estado nos tribunais, a advocacia de Estado, que está cometida ao Ministério Público designadamente para aqueles casos que o Estado não está interessado em entregar a advogados privados. No Ministério Público cai tudo o que não é atribuído aos grandes escritórios de advogados, o que ocupa um número imenso de magistrados e não corresponde de facto àquilo que era a inicial ideia dos códigos, que era atribuir ao Ministério Público a defesa total dos interesses do Estado. Defesa essa que muitas vezes até conflitua com a atuação do Ministério Público no âmbito penal e, portanto, tem que ser articulada de uma maneira mais eficaz e mais razoável, para dar coerência à atuação do Ministério Público. Não podemos estar num lado a acusar e no outro lado a defender, mesmo que sejam magistrados diferentes.
Outra causa apontada é a falta de recursos. Ainda esta semana a Procuradoria-geral Regional do Porto traçava um quadro negro.
Não há nenhum sistema que não se queixe disso, desde o Serviço Nacional de Saúde, passando pela Justiça, todos os grandes instrumentos da atividade do Estado neste momento se queixam. Como não há sempre possibilidade de aumentar o número de quadros, deveríamos refletir como é que podemos trabalhar mais e melhor, e isso implicaria ajustamentos legislativos, ajustamentos de regulamentação interna.
Que balanço faz destes quase dez anos que leva na Eurojust?
Bastante positivo, embora com notas às vezes negativas. Positivo na medida em que isto nos permite a todos compreender melhor os sistemas judiciários de todos os países e perceber quais as razões históricas e culturais que levaram esses países a terem esses sistemas. Isto faz-nos crescer mais como europeus, perceber as razões, as soluções, as dificuldades. E as dificuldades na área da justiça são muito grandes. Cada país tem a sua cultura própria e não é possível impor soluções de natureza quase federalizante.
A investigação ao ex-primeiro-ministro José Sócrates foi marcante. Esse processo ajudou a desconstruir a ideia de que há uma justiça para os fortes e poderosos e outra para os fracos?
Essa ideia não é uma abstração. É uma realidade, mas passa-se um pouco em todos os ramos da vida, não é? Os pobres têm sempre menos capacidade de utilização dos sistemas institucionais do que os ricos.
Mas a pergunta vai dirigida ao Ministério Público e à perceção de proteção de protagonistas da nossa vida social e política.
Houve alguns momentos extraordinariamente complexos e delicados em que a atuação do Ministério Público, já não falo mais recentemente, mas mais para trás, criou atritos entre o poder executivo e o poder judicial. Mas isso sucedeu um pouco por todo lado, aconteceu na França, aconteceu na Itália, aconteceu na Espanha. A partir do momento em que as autoridades judiciárias e judiciais iniciaram um percurso de levar à prática a sua própria independência e os princípios estatuídos na Constituição e nos códigos, esses embates foram-se dando.
Eram justas na altura as críticas ao procurador-geral da República Pinto Monteiro, acusado de alguma proteção ao então primeiro-ministro?
Francamente, eu nunca tive nenhuma pressão sobre mim, e tive alguns processos complexos, que no Tribunal de Contas levaram à aplicação de multas bastante grandes, que os tribunais judiciais normalmente nem sequer aplicam. A única vez que me quiseram dizer como é que eu devia orientar um determinado processo, eu disse “com certeza, manda uma ordem por escrito, que é o que está no Código, e eu farei assim”. Se não há ordem por escrito, não há ordem. Não tem que acontecer nenhuma orientação que é dada em estilo conselho paternalista.
Refere-se à diretiva sobre poderes hierárquicos que está pendente no Supremo Tribunal Administrativo e que foi impugnada por ser considerada uma forma de controlo dos inquéritos?
Controle dos inquéritos eu até acho que é positivo, não é? Sempre é melhor quatro olhos a ler o mesmo texto, porque hoje a Itália, que tinha um sistema absolutamente autónomo de cada procurador e independente de cada procurador, teve que reverter um pouco para um sistema de acompanhamento das peças processuais mais importantes.
Portanto é favorável a esta diretiva?
Embora considere que há muitas dúvidas sobre a legalidade da diretiva em face do novo Estatuto de Ministério Público, eu acho que uma orientação superior é positiva e pela minha posição na Eurojust tenho visto como teria sido vantajoso que algumas peças processuais tivessem sido revistas e assumidas se calhar por magistrados com grau hierárquico superior. Eu prefiro uma hierarquia transparente que se exerça corretamente e que se exerça livremente do que ter uma espécie de hierarquia de pressão lateral, subliminar, pessoal.
O procurador-geral da República é designado por proposta do Governo ao Presidente da República. Este modelo comporta riscos para a autonomia do Ministério Público?
Eu acho que o modelo funcionou razoavelmente bem até agora e comparativamente, por exemplo, com sistemas como o espanhol ou o francês, o nosso sistema, apesar de tudo, dá margens para uma maior autonomia . Mas repare que o problema da hierarquia e da orientação dos processos não passa necessariamente apenas por uma questão de ela ser exercida através dos estados superiores da magistratura. Por exemplo, quando se constituem equipas de procuradores para investigar um determinado processo, em meu entender, é necessário que só haja um titular. Por uma razão simples, é que basta um estar sujeito a uma suspeição, um impedimento, que a defesa vem a seguir e se todos são coautores do processo, ou com titulares do processo, isso vai pôr em causa e em risco o trabalho desenvolvido por todos.
A opinião publicada olha para a liderança de Joana Marques Vidal considerando que houve mudanças efetivas no Ministério Público e entende que com Lucília Gago terá havido uma regressão na acutilância da investigação. Qual é a sua opinião?
Pessoalmente, dado o esquema que temos no Ministério Público português, não atribuo diferenças resultantes dessas mudanças de liderança. Portanto, não vejo nessa perspetiva, não vejo aí, sou muito amigo pessoal da doutora Joana Marques Vidal, acho que ela fez um bom trabalho.…
A violação do segredo de justiça é um tema muito discutido na perspetiva dos jornalistas, mas não admite que acaba por haver pouca vigilância aos interesses de quem dentro do sistema de justiça coloca as informações nos média, por vezes parecendo até de forma cirúrgica?
Acho que quando é feito por magistrados é absolutamente repugnante. É repugnante também se for feito por outras entidades que colaboram no processo. Nós não podemos esquecer que os processos não são apenas visitados pelos magistrados do Ministério Público ou pelos juízes. Há muita outra gente que intervém e que atua no seio dos processos. É praticamente impossível hoje evitar a violação do segredo de justiça se não forem introduzidas medidas de investigação mais duras que são utilizadas noutros crimes. Mete-me um pouco de impressão é dizer-se sempre, sem qualquer prova, que aquilo saiu do Ministério Público. Pode ter saído do Ministério Público, mas não necessariamente. Já agora, o papel da imprensa aí é um bocadinho hipócrita, porque beneficia das fugas do segredo de justiça e depois faz o julgamento das mesmas. Mas enfim, é a vida.
Ouça a entrevista completa este domingo ao meio-dia na TSF