António Marçal, presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais, fala em mais de mil oficiais de Justiça em falta e lembra que máquinas não substituem profissionais.
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Durante cerca de duas semanas, a "Caravana da Justiça" do Sindicato dos Funcionários Judiciais (SFJ) visitou os tribunais de todo o país. Hoje, uma comitiva liderada por António Marçal entrega o balanço na Assembleia da República, a tempo das negociações do Orçamento do Estado e com um projeto recente do Governo para a revisão do Estatuto dos Funcionários da Justiça (EFJ), prometida desde 1999, em cima da mesa. A proposta não agrada, mas o dirigente sindical ainda acredita num acordo.
Que problemas encontraram ao fazer a "Caravana da Justiça"?
O que já estávamos à espera. Ou seja, um parque edificado a necessitar, em muitos locais, de obras de intervenção muito urgentes, principalmente a nível das coberturas. Alguns edifícios continuam a não cumprir as acessibilidades a que os edifícios públicos estão obrigados. E, cada vez mais, tribunais instalados em edifícios que não são condignos para o órgão de soberania tribunal e que não servem as funções: alguns não têm salas de testemunhas, nalguns juízos de família e menores não há sala para crianças. Muitos equipamentos estão desajustados das necessidades. Não falo só dos computadores: falo da falta de digitalizadores, impressoras, leitores de códigos de barras nas secções centrais.
E a nível de meios humanos?
Primeiro, temos uma classe envelhecida e comarcas onde a idade média ultrapassa os 59 anos. Isto é incompreensível. Nenhuma organização pode ter futuro, projetar um desenvolvimento, com uma faixa etária deste tipo. A própria DGAJ [Direção-Geral de Administração de Justiça] aceita que, pela força da idade, até 2028, mais de um terço [dos oficiais de Justiça] se vai aposentar. E a DGAJ está a esquecer que o envelhecimento traz problemas de absentismo e de doença. Outra realidade é o problema do absentismo presencial: pessoas que são mandadas regressar ao trabalho depois de períodos de baixa, mas que não reúnem o mínimo de condições para estarem lá. Quando dizemos que faltam mais de mil oficiais de Justiça, sabemos do que falamos.
O que vos faz acreditar que, desta vez, serão ouvidos?
Hoje há cada vez mais, da parte da opinião pública, a ideia de que a Justiça não funciona, porque interessa a alguns setores do poder político que ela não funcione. E os políticos têm de contrariar esta perceção. É preciso um investimento de qualidade em recursos humanos, em meios técnicos. Estou em crer que a pressão da opinião pública vai levar a que o poder político tenha de dar uma resposta cabal, sob pena de se virar contra eles próprios esta ideia.
A questão da falta de meios tem sido muito abordada, mas sobretudo em relação a magistrados. Sente que os oficiais de Justiça têm sido esquecidos?
Nós somos muitas vezes os esquecidos da Justiça, somos os invisíveis. Aliás, só se nota a nossa falta quando há paralisações. E isso é muito triste e desmotivante, quando hoje a chefia do Governo está nas mãos de um homem que foi um bom ministro da Justiça, quando a ministra da Justiça [Francisca Van Dunem] é uma magistrada. O que me parece é que há um discurso demagógico de que os computadores e os algoritmos podem resolver tudo. Por muito que lhes custe, a justiça é uma justiça de homens para homens, feita por homens e pelos homens. Não basta dizer "vamos ter máquinas". Nós falamos tantas vezes de sermos os bons alunos da Europa: é pena que nesta área não sigamos essa orientação.
Que modelo tem sido proposto?
Um em que os oficiais de Justiça possam ser os técnicos do processo. Temos de arranjar forma para que quer os juízes quer os procuradores tenham na sua equipa gente que possa fazer o trabalho de preparação para que eles possam proferir a sua decisão final.
A questão é aflorada na proposta de revisão EFJ apresentada pelo Governo. Do que discorda?
Aquilo que nós precisávamos de fazer era evoluir como carreira, e essa não está lá. Aquela não é a solução, porque manda fora todo o valor acrescentado, todo o saber que existe nos tribunais e que não está a ser devidamente utilizado e recompensado. As pessoas, ao fim de 20 anos [de trabalho], estão a ganhar 900, 900 e poucos euros.
Há 20 anos que esperam pelo EFJ. Mas, deduzo, este projeto não é de todo suficiente.
Não é solução para nada. Poderia não servir apenas para o sindicato e seria uma questão corporativa. O problema é que não serve o país, não serve a Justiça. Mexer por mexer, não vale a pena.
O não pagamento de horas extra, reforçado no atual projeto, é um dos grandes diferendos?
Claro. Isto não era um problema até um passado relativamente recente. Podemos ter duas formas de abordar a questão: o acerto ser feito mês a mês, em termos de trabalho que eu faço a mais, ou fazermos uma perequação [distribuição] que me permita, ao fim da minha vida contributiva, acertar contas com o Estado. Quando defendemos uma idade especial de aposentação [como vigorou em pleno até 2005] tem que ver com isso. Aquilo que eu não posso ser é obrigado a trabalhar e não ser pago por isso. É trabalho escravo.
Será então difícil o SFJ chegar a entendimento com o Governo?
Acho que não. Em 2019, nós estávamos no bom caminho com a senhora ministra e, portanto, estranhei bastante a proposta feita pelo secretário de Estado adjunto [Mário Belo Morgado]. Continuamos convictos de que, se retomarmos aquele que era o andamento do processo negocial até 2019, será um caminho fácil de trilhar.