Carla Pinto: "Se tivermos eleições, o que estiver pendente para aprovar na PJ ficará suspenso"
A inspetora-chefe Carla Pinto foi a primeira mulher a ascender à presidência da Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal (ASFIC) da Polícia Judiciária.
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Vai deixar o cargo em abril e, em final do mandato, fala sobre a integração dos inspetores do extinto SEF, a atribuição do subsídio de missão que levou outros órgãos de polícia criminal a uma onda de protestos, mas também aborda os impactos que podem afetar a PJ com as novas eleições legislativas. Os temas do combate à corrupção e à criminalidade violenta também não ficaram de fora da entrevista JN/TSF.
A falta de inspetores e de recursos da Polícia Judiciária (PJ) é um problema ultrapassado?
A falta de recursos humanos é, obviamente, uma situação diferente da que tínhamos há meio dúzia de anos. Nós éramos, no início desta década, à volta de mil inspetores e neste momento estamos a chegar aos 2500. Falta adquirir a experiência e dar formação a todas estas pessoas que estão a entrar aos poucos e, como compreende, receber mais inspetores do que existiam implica tempo, implica um processo de aculturação. Ou seja, de repente, recebemos uma série de pessoas, umas que queriam e concorreram para entrar para a PJ, outras que por motivos diversos, nomeadamente por uma decisão política, foram obrigados a transitar para a PJ, a entidade para a qual nunca tinham concorrido, e portanto todas estas pessoas, as que entraram via escola e as que transitaram, vieram para uma instituição que não estava preparada para receber tantas gente, nomeadamente a nível de edifícios. Tudo isto implica tempo.
A entrada em massa de inspetores vindos do SEF acaba por criar duas PJ?
Não há duas PJ. Há uma PJ. Temos que ter consciência de que a maior parte dos colegas que transitaram do extinto SEF não trabalhava na investigação criminal. Portanto, todas estas nomenclaturas, todo o crime, toda a abordagem, para eles são novidade. E como se compreende, há pessoas que aceitaram de bom grado esta transição e até a viram como um desafio. Mas há outras que não, por motivos diversos. Ou porque não gostam desta área ou porque não lhes apetece recomeçar uma carreira nova.
Isso tem criado alguma instabilidade no dia a dia?
No atual estatuto da PJ, está plasmado que para se chegar aos cargos superiores é necessário entrar pela base. Ao fim de sete anos como inspetor, pode-se concorrer para inspetor-chefe, depois de quatro anos é que se pode concorrer para coordenador e assim sucessivamente. O que é que nós temos com esta transição dos colegas do extinto SEF? Temos pessoas que nunca trabalharam na investigação criminal e que, de repente, têm funções de chefia ou de coordenação, sem ter passado por este processo que antecedia. Toda esta experiência nas várias funções faz com que melhore o exercício de um cargo superior. Para quem não vem da carreira de investigação criminal, obviamente que é difícil. Vai ter que ganhar este respeito dos pares. Mas para quem foi colocado nessa posição também não é uma situação agradável, porque obviamente que está numa situação de chefia ou de coordenação e tem sob si colegas que trabalham nisto há 10 ou 15 ou 20 anos. Portanto, obviamente que isto não é uma situação agradável. Como é que isto se corrige? Com a formação.
O processo de integração já terminou?
Há largas dezenas de colegas que estão nos aeroportos e que irão transitar ao longo deste ano. A transição física ocorrerá no fim deste ano. A unificação de todos, acho eu, demorará alguns anos.
A extinção do SEF com integração na PJ pode ser um primeiro passo para a unificação de forças e de serviços de segurança?
Não. O SEF tinha um estatuto aproximado da PJ e tínhamos competências partilhadas. O mesmo já não acontece com os outros órgãos de polícia criminal (OPC). Não faz sentido porque o “core business” da PJ é a investigação criminal pura e simples. Os outros OPC dedicam-se, essencialmente, a uma missão de segurança interna.
A atribuição do subsídio de missão aos inspetores da PJ, em 2023, levou os elementos de outros OPC a protestar para obter o mesmo. Como encarou esses protestos?
O que realmente nos surpreendeu foi que sindicatos de outras polícias que têm vários suplementos viessem questionar um suplemento devido e merecido pela PJ, quando nunca a PJ questionou os inúmeros suplementos que os outros recebem. Também nos surpreendeu o facto de vários sindicatos unidos tentarem que a PJ não recebesse este subsídio de missão. Foi o que fizeram quando foram junto do sr. presidente da República para que não promulgasse o mesmo. Que eu tenha conhecimento, foi a primeira vez que isto aconteceu entre sindicatos. Honestamente, a nível sindical, a mágoa existe. A nível profissional, continuamos a trabalhar todos juntos, temos um bom relacionamento profissional e trabalho com os outros OPC.
De que forma a atual crise política - que pode ditar a realização de eleições e um novo Governo - pode afetar o trabalho e a organização da PJ?
Uma vez que estamos a ter um aumento de recursos humanos a nível nacional - alguns, se calhar, que excedem o que era previsível para determinadas localidades -, o que nós precisamos é de regras claras e transparentes para cada local. A nomeação de diretores para a PJ obviamente depende de um despacho ministerial. Portanto, se tivermos uma alteração política, se tivermos eleições neste momento, o que estiver pendente para ser aprovado na PJ ficará suspenso, mais uma vez. E honestamente nós precisamos que os problemas sejam resolvidos rapidamente, para que existam regras e que todos nós saibamos com o que podemos contar na instituição onde trabalhamos. Tem que haver regras claras e definições para resolver os problemas de cada diretoria ou departamento da PJ. Cada vez que uma ministra da Justiça toma posse, tem primeiro que se inteirar dos dossiês e perceber como é que funciona a instituição, antes de poder tomar qualquer decisão. Isto demora meses, porque a atual ministra da Justiça, tal como a anterior, não está ali apenas para resolver os problemas da PJ. Tem muitos outros. Tudo isto implica tempo que a PJ não tem. Ou seja, estamos a falar de regras que têm de ser claras, estamos a falar de regulamentos, por exemplo.
Quais são esses regulamentos?
Nós temos um estatuto que saiu em 2020. Implicava que, em 180 dias, fossem regulamentadas de seis a 17 portarias. Continuamos com 14 portarias para regulamentar. Destas 14, a maior parte não tem qualquer impacto orçamental. Uma que tem esse impacto é a questão do trabalho suplementar. Ou seja, todo aquele trabalho que é exercido à noite e ao fim de semana. Quando nós entramos, as pessoas recebiam 3,61 euros à hora, o que fica muito abaixo do que ganham num dia normal das 9 às 17.30 horas. Atualmente, recebem 6,50 euros à hora e ainda fica muito aquém do que a lei determina. Mas há outras que não têm impacto orçamental nenhum. Por exemplo, um estatuto disciplinar, um seguro de acidentes na PJ, um regulamento de piquetes e prevenções - cada departamento tem quase um regulamento próprio. Se houver novas eleições agora, este trabalho todo que já fizemos em alguns regulamentos tem que ser avaliado pela direção da PJ com os restantes sindicatos e depois tem que ser aprovada junto do Ministério da Justiça. Como é óbvio, isto demora tempo, e com eleições fica mais uma vez em stand-by.
Existem desigualdades na atribuição de recursos humanos ou de meios técnicos entre as diferentes zonas do país?
Lisboa sempre teve maior reforço de meios humanos do que o Porto e do que as restantes zonas do país. E, obviamente, que assim foi e assim será, até porque a abrangência é maior e tem as unidades nacionais de combate a determinadas áreas, como o tráfico de estupefaciente ou a corrupção. A PJ está organizada desta forma. Agora, há por exemplo uma situação de discrepância. A diferença de recursos humanos entre Lisboa e Setúbal é enorme. Tem que haver um reajuste dos meios humanos e isto tem que ser feito via direção da PJ e via diretores de cada departamento. Portanto, é por isso que refiro que nós estamos numa fase em que há urgência na nomeação de diretores para todos os departamentos, para depois haver decisões na organização interna.
Existem organizações criminosas que se implantaram em Portugal, como é o caso da máfia brasileira PCC. A PJ está preparada para lidar com o maior grau de violência trazido por estes grupos?
Há muitos anos que a PJ trabalha e investiga as situações criminosas, nacionais e transnacionais, e sempre com resultados positivos. Portanto, neste momento em que temos um reforço de meios humanos, mesmo que haja um aumento desse tipo de criminalidade, a resposta será dada. E o que é necessário? Muita formação. Porque quanto mais pessoas temos, mais formação temos que lhes dar, para que saibam todas trabalhar em conjunto. Estamos preparados.