Ministério Público acusa de homicídio qualificado filho e nora. Imobilização na cama, fome e falta de cuidados não foram só negligência, diz.
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António e Blanca de Oliveira, filho e nora de Maria Nazareth, foram acusados do homicídio qualificado. O Ministério Público diz que os arguidos amarraram a uma cama a idosa de 98 anos e, ao longo de dois anos, deixaram-na à fome, sem cuidados de saúde nem de higiene, num apartamento em Setúbal. O objetivo do casal, segundo a acusação, foi “acelerar a morte” da nonagenária.
O casal de venezuelanos, ele com 62 anos e ela com 65, está atualmente em prisão preventiva e pediu a abertura da instrução do processo, contestando a imputação do crime de homicídio qualificado e defendendo antes que devem ser julgados por homicídio negligente, com moldura penal que, em caso de condenação em tribunal, permitiria a suspensão da pena de prisão.
A idosa foi encontrada morta em casa, num terceiro andar da Rua das Giestas, em Setúbal, a 14 de dezembro do ano passado, tendo sido o próprio filho a chamar as autoridades. Mas, perante o cenário ali encontrado, a PSP acionou de imediato a Polícia Judiciária. A idosa encontrava-se claramente subnutrida e com feridas graves nos braços e pernas, por, alegadamente, tentar soltar-se das amarras que a prendiam à cama. Para aliviar os ferimentos, diz o MP, o homem apenas lhes aplicava álcool e creme Nivea.
O Ministério Público descreve que António e Blanca de Oliveira viviam desde 2020 na casa do filho daquele. Maria Nazareth, portuguesa que emigrou para a Venezuela na juventude, tinha regressado e vivia desde 2018 na mesma casa. Em 2021, o seu neto saiu do apartamento, tendo ali ficado a sua avó com os dois arguidos.
Para o MP, António e Blanca “decidiram, de forma deliberada e consciente, em comunhão de esforços e intentos, e na execução de um plano comum, não prestar quaisquer cuidados à vítima”.
Em 2023, a mulher deu uma queda na casa de banho e fraturou o fémur, mas nunca recebeu assistência médica. “Bem sabendo que a vítima, mãe e sogra dos arguidos, precisava de tratamento médico urgente, a que não podia, nem conseguia, recorrer sozinha, deixaram-na, deliberadamente, à sua sorte e intenso sofrimento”, descreve a acusação do MP.
“Dores excruciantes”
Ao longo de dois anos, entre 2022 e 2024, Maria Nazareth nunca foi assistida no hospital nem no centro de saúde, onde era levada com alguma frequência quando o seu neto residia consigo.
“Não obstante a arguida Blanca Oliveira não trabalhar, passando os seus dias na residência comum e, bem assim, de o arguido António Oliveira trabalhar apenas no período noturno, nenhum dos arguidos garantiu, nos longos meses que antecederam a morte de Maria da Nazareth, os cuidados mínimos de saúde, higiene, alimentação e hidratação de que aquela necessitava e que aqueles podiam, deviam e eram capazes de providenciar”, acusa o MP.
Segundo este, os arguidos amarraram a idosa à cama para “acelerar a [sua] morte e de forma a controlarem a agitação própria que a doença (demência) lhe impunha”.
Não obstante encontrar-se amarrada, Maria da Nazareth terá tentado libertar-se. Não conseguiu e sofreu o “esfacelamento da derme, com exibição da epiderme, o que lhe originou dores excruciantes”, pode ainda se ler na acusação do MP.
MP não identifica motivação nem ação de cada arguido
Após a acusação por homicídio qualificado, os arguidos requereram a instrução, não com a expectativa de evitar o julgamento, mas para serem pronunciados apenas pelo crime de homicídio por negligência, ou pelo de violência doméstica. O advogado do casal, Pedro Pestana, argumenta que, na sua acusação, o Ministério Público não aponta uma motivação para o crime, nomeadamente o que tinham a ganhar com a morte da idosa, que auferia 300 euros de pensão, nem descreve o contributo de cada arguido no crime.
Homicídio
Qualificado
Ocorre homicídio qualificado, punível com 12 a 25 anos de prisão, se a morte for produzida em circunstâncias de “especial censurabilidade ou perversidade”, segundo o Código Penal. Isto sucede, por exemplo, se o autor for descendente da vítima, se matar pessoa “particularmente indefesa, em razão de idade” ou se “agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados” e persistência “na intenção de matar por mais de 24 horas”.
Negligente
Comete homicídio por negligência quem viola um dever de cuidado objetivo. Na forma simples, o crime é punido com pena de prisão até três anos ou de multa. Se a negligência for grosseira, pode ir até cinco anos de prisão.