Um pai condenado por difamar o procurador responsável pela atribuição dos poderes parentais relativos à filha vai ser ressarcido pelo Estado do valor da coima e dos montantes das custas judiciais. Victor Cardoso, de Oeiras, vai receber mais de 18 600 euros. A sentença é do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) .
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Na sequência de um divórcio, Victor Cardoso ficou um longo período sem ver a pequena filha e, quando teve autorização judicial para estar com a menina, foi obrigado a ter a companhia de duas assistentes sociais.
Num desses encontros, mostrou-se revoltado com o magistrado do Ministério Público que o impedia de brincar sozinho com a filha. "Isso é uma afronta, não é um tribunal, não é nada, aquele procurador, ele bebe, ou eu não sei... ele não abre a boca", disse. As palavras foram anotadas pelas assistentes sociais e transmitidas ao tribunal.
Victor Cardoso foi, então, acusado pelo Ministério Público (MP) de difamação e, em novembro de 2018, condenado a uma coima de 1600 euros, no Tribunal de Lisboa. “Essas declarações são gravíssimas... [Victor Cardoso] não pode legitimar a sua conduta argumentando que ficou descontente ou desiludido com a duração ou o resultado do processo, uma vez que havia mecanismos legais à sua disposição para contestar eventuais atrasos ou falhas durante o processo. Além disso, essas declarações não podem ser consideradas como mero desabafo”, justificaram os juízes.
Em maio de 2019, o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a condenação e Victor Cardoso recorreu para o TEDH, com a justificação de que a sentença constituía uma violação do seu direito à liberdade de expressão.
Magistrados podem ser criticados
Num acórdão conhecido nesta terça-feira, os juízes europeus deram-lhe razão. Salientando que o pai português fez as declarações “durante uma reunião com assistentes sociais, no âmbito do processo relativo às responsabilidades de direitos parentais da filha”, os magistrados referiram que “que não é descabido considerar que o recorrente esperava alguma discricionariedade e reserva por parte destas profissionais”.
“De acordo com o manual de boas práticas para a unidade especializada que trabalha com tribunais de família, essas reuniões implicam um clima de confiança, para que os pais se sintam livres para expressar seus pensamentos abertamente. Por conseguinte, nas circunstâncias específicas do caso, o TEDH não partilha da opinião do órgão jurisdicional nacional, segundo a qual o recorrente sabia que, estando num ambiente institucional, os profissionais comunicariam as suas palavras ao tribunal”, explicaram.
O tribunal europeu conclui, por isso, que as declarações que originaram a condenação “consistiam na expressão de uma opinião, portanto, de um juízo de valor”. Ou seja, eram “uma forma de desabafo”. “Verifica-se que o recorrente criticava a inércia do MP em relação ao contacto com a filha, que considerava ser um direito dela”, acrescentou.
Ainda segundo o TEDH, “os magistrados do MP são funcionários públicos, cuja função é contribuir para a boa administração da Justiça”, e “fazem parte da máquina judiciária”, que, “numa sociedade democrática”, pode ser criticada. “Por outras palavras, impõe-se também a esses funcionários um elevado grau de tolerância”, defende.
Advogada satisfeita
Considerando que a condenação em Portugal foi “manifestamente desproporcionada”, o TEDH obrigou o Estado a pagar os 1600 euros da coima. Victor Cardoso não vai receber a indemnização de 10 mil euros por danos morais que exigiu, mas será compensado com mais 17 096 euros por custas que suportou com os processos judiciais.
“Fez-se Justiça e há uma reposição do estado normal das coisas”, declara a advogada de Victor Cardoso. “Um cidadão não pode ser prejudicado por usar o seu direito à liberdade de expressão”, afirma Ana Reis Mota, para quem “as críticas às instituições não podem ser encaradas como um ataque pessoal, sobretudo neste tipo de matérias sensíveis”.