Condenados a 21 anos de prisão por matarem pai que resgatou menor de casamento forçado
Familiares do noivo mataram cigano que desafiou tradição e salvou menina de 13 anos de união urdida por clãs de Lousada.
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Dois homens, de 25 e 37 anos, foram condenados a 21 anos de prisão por homicídio qualificado. A vítima foi um homem, de 39 anos, que ousou ir contra a tradição cigana ao ajudar a filha, de 13 anos, a fugir de um casamento forçado. A pena foi confirmada, em julho deste ano, pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ).
O crime ocorreu a 5 de julho de 2019, em Foz Côa. Uma semana antes, Francisco Cardoso, 39 anos, denunciara à GNR que a filha menor estava sequestrada pelo "noivo", de 17 anos, em casa do pai deste, em Lousada. Em março daquele ano, seguindo o costume cigano, as famílias dos menores tinham apadrinhado um casamento entre ambos. Porém, três meses depois, a "noiva" pediu ao pai para a ir buscar.
O progenitor, em desafio da tradição, denunciou o caso às autoridades. E a GNR da Lixa foi buscar a menina à casa do "sogro" e devolveu-a à família. O pai do noivo, Domingos Lustriano, conhecido por Mingo, de 36 anos, jurou vingança. Francisco sabia que as ameaças eram para levar a sério. Pegou na família e fugiu, escoltado pela GNR, para Vila Nova de Foz Côa. Porém, os 165 quilómetros de distância não foram suficientes. Mingo chamou um primo, José Calisto, de 24 anos, e foram armados atrás de Francisco.
"Ó pai, Estão aí para nos matar!"
Já em Foz Côa, os perseguidores avistaram o filho de Francisco. Este reconheceu-os e fugiu, mas aqueles foram no seu encalço, de pistolas em punho. "Eles estão aí! Ó pai, eles estão aí armados para nos matar", gritou. Já não foi a tempo. Francisco não conseguiu segurar a porta e eles invadiram a casa.
Mingo disparou um tiro mas falhou. Calisto disparou e acertou em cheio no peito de Francisco, que ainda cambaleou ao longo de 26 metros, em plena rua, antes de morrer. Concretizada a vingança, os primos fugiram para Espanha. Depois, andaram escondidos, junto de familiares, nas zonas do Porto, Lisboa e Alentejo. A 29 de julho de 2019, Mingo foi localizado e detido em Marvila, Lisboa. Seis dias depois, Calisto era detido em Reguengos de Monsaraz.
A 25 de julho de 2020, foram condenados pelo Tribunal da Guarda a 20 anos de prisão, por crimes de homicídio qualificado em coautoria e detenção de arma proibida. Foram ainda condenados a pagar 280 mil euros aos familiares da vítima.
Os arguidos e o Ministério Público recorreram e, a 17 de fevereiro de 2021, a Relação de Coimbra também deu como provado um crime de violação do domicílio e aumentou a pena de cada um para 21 anos de prisão.
Os arguidos ainda recorreram para o STJ, alegando que não queriam matar a vítima, mas apenas reatar o casamento (ler texto ao lado). Os dois recursos acabariam por ser rejeitados pelo STJ, que manteve ambas as penas.
RECURSO
"Estava em causa a honra do jovem abandonado"
Em recurso para o STJ, José Calisto argumentou que ele e outro arguido são de etnia cigana e "estava em causa a honra do jovem abandonado e consequentemente da família". Culpou então a "noiva", que "rompeu" o casamento celebrado "de acordo com os usos e costumes da etnia", justificando: "Na defesa dos valores desta comunidade, num ambiente de exaltação e porque há um disparo prévio, o recorrente dá o tiro". "Não houve uma chacina", diz, alegando que, se quisesse matar, teria "descarregado uma série de balas". O outro arguido disse que disparou a meio metro da vítima e não acertou porque "efetivamente não tinha a intenção de matar". Além disso, a qualificação de dolo direto é "injusta", porque, quando saiu do local do crime, a vítima ainda estava viva, acrescentou.
FICHA
Fugiram para a GNR
Após ter resgatado a menina, a família da noiva foi ameaçada de morte pelos familiares do noivo. Numa noite foram disparados tiros para a casa da família, que fugiu e se refugiou no posto da GNR.
Escoltados na fuga
Francisco e a filha pediram ajuda às autoridades para sair de Lousada. A GNR escoltou-os até casa de familiares em Foz Côa. A mulher, o filho e a esposa e as três netas foram depois ter com eles.
Adivinhou destino
O pai do noivo sabia que tinham familiares no Alto Douro. Foi no seu encalço e descobriu-os.