Parecer pedido pela procuradora-geral da República confere amplos poderes à hierarquia para intervir em processos e, ainda assim, diz que as ordens ou instruções não devem ficar escritas nos mesmos processos
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O Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República emitiu um parecer, divulgado ontem à noite no respetivo portal (www.ministeriopublico.pt), que estabelece que as normas legais dão à hierarquia do Ministério Público, em processos de natureza criminal, "competência para a prática de atos processuais penais, máxime modificando ou revogando decisões anteriores".
O parecer do Conselho Consultivo, aprovado por unanimidade, foi pedido pela procuradora-geral da República, Lucília Gago, em reação à controvérsia causada pela instrução que o diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, Albano Pinto, deu aos procuradores titulares do inquérito sobre o furto e "achamento" do material de guerra furtado dos paióis de Tancos para que não inquirissem o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, nem o primeiro-ministro, António Costa (este foi entretanto inquirido, por escrito, mas na fase de instrução do processo e a pedido do arguido Azeredo Lopes, anterior ministro da Defesa Nacional).
A Procuradoria-Geral da República não indica em que data foi emitido o parecer, sendo certo que foi divulgado a menos de dois dias de o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público apresentar um parecer de sentido contrário. Este documento, da autoria do professor de direito Luís Fábrica, vai ser apresentado e discutido numa conferência, amanhã, em que vão participar a anterior procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, e a ex-eurodeputada Ana Gomes.
Ordens ocultas
"A subordinação hierárquica dos magistrados do Ministério Público (...) pressupõe, para além de outros poderes, o reconhecimento do poder de direção que integra, em geral, o conteúdo da relação hierárquica e que se consubstancia na faculdade de emissão de ordens e instruções, gerais ou concretas, pelo superior hierárquico", estabelece o parecer do Conselho Consultivo da PGR, interpretando a Constituição, o Código de Processo Penal e o Estatuto dos Magistrados do Ministério Público.
O Conselho Consultivo defende que "a subordinação hierárquica dos magistrados do Ministério Público melhora a administração da justiça, evitando a fragmentação de procedimentos e resultados, permite a execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania (art. 219.º, n.º 1, da CRP) e o controlo dos atos processuais".
Uma das questões suscitada pelo caso de Tancos foi o facto de o diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal ter impedido os titulares do inquérito de ouvirem António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa num documento que não integrava os autos do respetivo inquérito-crime. E o parecer também valida essa atuação de Albano Pinto.
"A emissão de uma diretiva, de uma ordem ou de uma instrução, ainda que dirigidas a um determinado processo concreto, esgotam-se no interior da relação de subordinação hierárquica e não constituem um ato processual penal, não devendo constar do processo", conclui o Conselho Consultivo a propósito.
O portal do Ministério Público dá conta de que a procuradora-geral da República emitiu uma diretiva, a primeira de 2020, a determinar que a doutrina do referido parecer do Conselho Consultivo "seja, no contexto das relações hierárquicas, seguida e sustentada pelo Ministério Público".
Ilegal, diz sindicato
O parecer que foi encomendado pelo SMMP a propósito deste conflito em torno da autonomia interna do Ministério Público - isto é, a margem decisória de cada magistrado - defende o reforço daquela autonomia, segundo adiantou à agência Lusa, esta terça-feira, o dirigente sindical António Ventinhas.
Em outubro do ano passado, António Ventinhas defendeu que o Código de Processo Penal e o Estatuto do MP - neste caso, tanto na versão anterior como naquela que entrou em vigor em 2020 - não dão grande margem de interpretação: as ordens ou instruções do superior hierárquico para o titular do processo acusar ou arquivar, para inquirir ou não testemunhas, para constituir ou não arguidos, ou para lhe serem mostrados os projetos de acusação, são práticas que se têm normalizado, pelo país fora, mas que são "ilegais" e devem ser objeto de "proibição e correspondente punição", disse o líder sindical.
O Conselho Consultivo da PGR é presidido pela própria Lucília Gago, tendo como vogais os procuradores-gerais adjuntos Maria de Fátima da Graça Carvalho, Eduardo André Folque da Costa Ferreira, João Eduardo Cura Mariano Esteves, Maria Isabel Fernandes da Costa (em acumulação com as funções de auditora jurídica junto da Assembleia da República), João Conde Correia dos Santos, Maria da Conceição Silva Fernandes Santos Pires Esteves e Catarina Teresa Rola Sarmento e Castro.