A Estratégia de Combate à Corrupção do Governo já mereceu críticas e aplausos por uma suposta aproximação aos mecanismos de delação premiada.
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Mas, em entrevista ao JN, a ministra da Justiça sublinha que a estratégia não passa pela delação premiada. "Não vale tudo", justifica Francisca Van Dunem, que também defende que a repressão não é panaceia.
Foi coincidência ou simbolismo a Estratégia de Combate à Corrupção 2020-2024 ser apresentada pelo Governo na véspera do julgamento de Rui Pinto?
Coincidência. O senhor primeiro-ministro tinha anunciado, em junho ou julho, que a estratégia seria aprovada na primeira semana de setembro. Nessa altura, não se fazia ideia da data do julgamento de Rui Pinto. Os dois factos não têm nenhuma ligação.
Se a nova legislação for aprovada antes do fim do julgamento, Rui Pinto poderá beneficiar?
Ele não está a ser julgado por corrupção. Em segundo lugar, o regime de proteção de denunciantes, tal como plasmado na diretiva europeia, prevê a proteção dos denunciantes integrados em organizações. Não é exatamente a situação do Rui Pinto. Poderá eventualmente beneficiar de outro regime qualquer, mas não propriamente destas propostas.
O regime de proteção de denunciantes vai restringir-se a denunciantes que integram organizações?
Em princípio, vai centrar-se na lógica da diretiva. Mas vai descentrar-se da lógica dos crimes lesivos de interesses financeiros da União [Europeia]. Vamos aplicá-la a outros crimes.
A Estratégia diz que o sistema repressivo, por mais sofisticado que seja, é insuficiente para diminuir a corrupção. Acredita mesmo na prevenção?
Aquilo que posso garantir é que no plano da repressão não se ganha esta guerra. Por melhores que sejam os meios de investigação criminal, a repressão, por si só, não consegue chegar às raízes. Estamos a falar de um fenómeno que tem raízes culturais, históricas, muito profundas. E é preciso enfrentarmos essa dimensão do problema, se não queremos ver os sistemas de justiça afogados e responsabilizados pela eventual ineficácia da sua resposta.
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Qual a área mais importante na prevenção? É a das escolas?
Essa dimensão da formação para a integridade é essencial, como também a formação para a probidade ao nível dos trabalhadores em funções públicas. É importante que cada vez mais se ofereçam serviços à distância, online, porque não só se facilita a vida do cidadão como se impede a ligação direta, pessoal, entre o cidadão e a administração, que, também, infelizmente, por vezes, acaba por gerar oportunidades corruptivas.
Não é estranho tentar evitar que os cidadãos vão aos serviços da Administração Pública para evitar situações dessas?
Não! O grande objetivo é simplificar. Não me passa pela cabeça, nem sequer perpassa pela estratégia a ideia de que os funcionários que trabalham ao nível do "front office" são corruptíveis. Aliás, a certo passo da estratégia, refere-se até que, do ponto de vista formativo, é importante que se discutam hipóteses teóricas para o trabalhador em funções públicas estar em condições de, perante um contexto de sedução ou de alguma oferta, perceber o contexto e antecipar a resposta.
No plano repressivo, o Governo propõe alterações cirúrgicas ao mecanismo, já existente na lei há muitos anos, da dispensa e atenuação de pena. Porque não assume que é uma forma de delação premiada?
Não é delação premiada. A delação premiada tem por pressuposto um processo de negociação em torno da pena concretamente aplicável. Há um processo negocial entre alguém que faz uma denúncia e o MP, sendo que o elemento fulcral é o quantum da pena concreta.
Para haver dispensa de pena, prevê-se que a denúncia tem de ser feita antes da abertura de inquérito. Porque não até ao final do inquérito, ou mesmo até ao final do julgamento em primeira instância?
Esse é outro fator que nos diferencia da delação premiada. Entendemos que relativamente a pessoas que venham a confessar o crime, apanhados nas malhas do processo, em que se apercebem ou presumem que existe prova contra elas, essas pessoas não estão propriamente a retratar-se nem a arrepender-se. Estão a fazer um movimento salvífico.
Mas seria mais eficaz?
Talvez. Mas não vale tudo. Esta estratégia parte sempre da ideia de que estamos a enfrentar os fenómenos corruptivos com respeito pelas regras do Estado de direito. Colocar a hipótese de alguém que comete um crime desta gravidade e depois apanhada e confrontada com a prova existente vem dizer "ai, mas afinal eu quero confessar", não.
Este ponto está fechado?
Temos uma discussão pública durante um mês. Receberemos todos os "inputs" possíveis e aquilo que temos apelado à sociedade civil é que nos apresentem propostas, sugestões. Mas eu diria, sempre: o Estado de direito é essencial.
Área da nacionalidade é a de maior risco
Como vão ser configurados os acordos de sentença?
Num julgamento, havendo confissão integral e sem reservas, fica dispensada a produção da prova e é possível, por acordo entre o Ministério Público, o arguido e o tribunal, uma moldura penal abstrata, entre x e y, diferente daquela que estava prevista no Código.
Para que serviram os planos de prevenção da corrupção em entidades públicas?
Estão em vigor, foram feitos com muito apoio do Conselho de Prevenção da Corrupção, e serviram não só para se mapear os riscos como também para encontrar estratégias de resposta aos riscos de corrupção. Isso foi sendo feito organismo a organismo e serviço a serviço. Obviamente uns organismos deram mais atenção a esses instrumentos e outros terão dado menos.
Serviram para diminuir a corrupção?
Serviram para alertar, pelo menos. No que diz respeito ao Ministério da Justiça, serviram para identificarmos as áreas de risco.
Que áreas?
No nosso caso foram as áreas da nacionalidade.
E contratação pública? O que está previsto?
Está neste momento no Parlamento uma proposta de lei que o Governo apresentou relativa a alterações do Código dos Contratos Públicos. Aditamos aqui a ideia de que a existência dos planos de prevenção da corrupção, o chamado programa de cumprimento normativo, venha a funcionar como requisito não de admissibilidade, porque são todos admitidos a um concurso público, mas que seja exigente de um ponto de vista documental. As pessoas têm de apresentar os planos de prevenção da corrupção.
Em muitos contratos públicos publicitados, verifica-se que são fundamentados com "ausência de recursos próprios". Em vários casos de aquisição de serviços é do conhecimento comum que a Administração tem recursos próprios. Pode haver uma intervenção legislativa que aumente a exigência de fundamentação, por poder ser uma porta aberta para a corrupção?
Seguramente estes tipos de atos hoje já são sancionáveis. Se houver evidência de que o agente público, tendo meios ao seu alcance, no fundo engendra um concurso público para beneficiar uma entidade terceira, parece-me óbvio que há aqui uma componente de responsabilidade criminal. Para mim isso é claro. Devo, no entanto, dizer que não tenho tanta segurança relativamente a haver ou não haver meios. A Função Pública tem sido muito reduzida. Por isso, eu percebo que, em alguns casos, seja efetiva a ausência de recursos, até porque os nossos orçamentos são escassos.
Há alguma previsão sobre o financiamento dos partidos?
Há um pacote que o Parlamento aprovou na legislatura passada. A Comissão para a Transparência tem em curso esses dossiês e esperamos que avance.