Fátima matou filho autista e está indiciada por homicídio qualificado. Irmã mais velha já a abraçou na prisão e diz que ela não deu conta do que fez. Pai, sempre ausente, pretenderá agora obter indemnização pela morte do filho.
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- Já vais, Fátima?
- Já vou.
- Não vás para longe, olha que hoje vai arder muito o sol...
- ...
E ela não respondeu mais nada, conta a vizinha Maria Helena, 84 anos, que já estava junto às roseiras do pátio de casa sentada àquela hora da manhã ainda suave de sol. Eram 10 horas e pouco de 6 de julho, faz amanhã [segunda-feira] uma semana que aconteceu, e Fátima, que levava a cara magra fechada, descia da sua casa branca, o filho Eduardo junto a ela pela mão, o menino ia sossegado, trazia uma saquita com bananas, uma sande e uma garrafa grande de água e ainda levava um pau, porque o filho tinha pavor de cães e podia aparecer-lhes algum.
Os dois continuaram a descer e internaram-se no caminho de terra, desaparecendo de seguida na colina entre o capim crespado que cobre de dourados o monte de oliveiras da aldeia de Cabanelas, concelho de Mirandela, distrito de Bragança.
Foi a última vez que a vizinha Maria Helena os viu. Pouco mais de uma hora depois, após percorrer a pé os três quilómetros quentes e o pó dos montes, onde a terra incerta já está lavrada e semeada com sorgo, Fátima, de 52 anos, no ermitério do campo, empurrou, afogou e matou num poço o filho autista de 17 anos, pretendendo matar-se a seguir.
Não o conseguindo, horas trémulas depois da fatídica, ligou à GNR, admitiu o crime, disse onde era o poço, a GNR veio, prendeu-a, vieram também os bombeiros, recolheram o menino morto, chegou por fim a PJ para conduzir a investigação.
No dia a seguir de manhã cedo, a mulher foi apresentada ao juiz no Tribunal de Mirandela, prestou declarações, viu-se indiciada por crime de homicídio qualificado, aguarda agora acusação e julgamento, encerrada no estabelecimento prisional de Santa Cruz do Bispo, em Matosinhos.
O decretamento da sua prisão preventiva deve-se a dois fatores: ao possível perigo de fuga - Fátima tem uma irmã emigrada em Espanha e um irmão que vive em França - e à sua própria proteção, já que a mulher declara todos os dias o desejo de se matar, duas vezes isso sucedeu no dia dos factos: a primeira no poço onde não se conseguiu afogar; a segunda quando quis lançar-se da varanda do 3.º andar da sua casa, ato impedido pelos cabos da GNR. A moldura penal que agora encara coloca a sua punição entre os 12 e os 25 anos de prisão.
O pedido chocante do pai
Fátima carregou sempre a sua cruz sozinha, era como se a arrastasse a raspar pelos montes, diz-se na aldeia onde medra a vertigem e cresce a piedade perante o ato de horror, a mãe desacompanhada na cruz pesada do filho deficiente, epilético e transtornado do espectro do autismo, no qual estaria a regredir.
A crescente violência do filho, que era alto e encorpado e não falava, terá impulsionado o desespero e o crime. É o que conta José Manuel Periquito, o primo que a foi buscar quando ela lhe ligou a confessar, que se meteu ao caminho a chispar no trator, azoado, a descrever o "burnout" e a severa depressão da Fátima, que se via ameaçada, insegura e sozinha. Mais vizinhos atestam o esgotamento da mulher perante as crises carregadas e repetidas do rapaz, que a ameaçava com facas e força, às vezes destruindo tudo o que havia na cozinha da casa onde moravam os dois, a mãe fechada horas seguidas no quarto para ele não lhe bater.
Eduardo, que há quatro meses estava confinado a casa porque a escola especial onde andava em Vinhais fechou portas na pandemia do coronavírus, teria piorado muito da sua condição defetiva. E desde meados de março até à semana passada, no insuportável isolamento, sem lhe ter mão, a mãe terá tentado colocá-lo numa instituição de saúde mental local, queixando-se de falta de vaga e de resposta. O Instituto da Segurança Social alega, no entanto, "desconhecer a situação ora descrita pelos meios de comunicação e redes sociais", atestando que "o jovem em causa nunca foi sinalizado nos serviços", não havendo registos de pedido oficial "para a sua integração".
Mas a solidão da mãe e o seu exílio sentimental começaram muito antes, logo após o nascimento do filho, que teve quando tinha 35 anos, e que foi fruto de um amor extraconjugal, um amor incorrespondido por um homem mais velho chamado Hermenegildo. É esse pai, que estava casado com outra mulher, o pai que nunca fez parte da vida da criança, que nunca cumpriu uma vez o acordo de 200 euros mensais para pensão de alimentos, o pai que na sexta-feira ninguém viu no funeral do seu filho, que já foi a enterrar no cemitério de Cabanelas, é esse pai que agora aparece em cena para chocar ainda mais a situação. Hermenegildo, apurou o JN, terá já manifestado intenção de pedir indemnização monetária pelo homicídio de Eduardo. O valor pretendido está por apurar.
Irmã abraça-a na prisão
Debaixo da pena da grande dor psicológica que é o desgosto e o dó pelo sofrimento da irmã, Maria Augusta, que é mais velha que Fátima e tem um sentido de proteção e carinho por ela a transbordar, há cinco dias que não dorme. Chegou a Cabanelas ainda na noite do dia do horror, veio a lampejar de Espanha, para onde emigrou há 40 anos, casou e teve três filhos, gerindo agora uma confeitaria de sucesso em Saragoça.
Ela desmorona-se: "Estive com ela no dia do tribunal. Estava muito mal, a vista espantada, os olhos fundos, muito amarela, alheada, parecia drogada, muito magra, e não parava de chorar, meu Jesus". Desmorona-se outra vez: "A minha irmã pediu-me perdão, sou madrinha do menino, beijei-lhe os pés no caixão no dia do funeral, parecia um anjinho muito grande, ela não vai saber viver sem ele, não deu conta do que fez, não sabe, só Deus, mas sabe que a sua vida agora acabou".
As duas irmãs dão as mãos, seguram-se a tremer:
- Eu matei-o, Augusta.
- Ele agora é um anjinho.
- Perdoas-me, irmã?
- Perdoo, eu sei que não estás bem, eu vou-te sempre amar, não te esqueças, para sempre eu perdoo-te, irmã.
E as duas ficam abraçadas, tempos intermináveis, aferroadas uma à outra, inundadas a chorar.