Polícias estão cada vez mais atentas a Internet oculta e anónima que é um paraíso para criminosos.
Corpo do artigo
"Imagine o site OLX [usado para a compra e venda de todo o tipo de produtos legais], mas o que está lá à venda é cocaína, armas, notas falsas ou bases de dados de cartões de crédito." É desta forma que o inspetor da Polícia Judiciária (PJ) Ricardo Vieira, especialista em combate ao cibercrime, descreve a darknet, um espaço virtual repleto de bandidos, de "acesso demasiado fácil" e de controlo complexo, se não impossível.
Só em julho e a partir de Portugal foram feitas, usando o Tor, o mais famoso dos vários navegadores e redes existentes, 3600 ligações por dia a esta internet alternativa, anónima e sem rasto. Nem todas foram criminosas, mas muitas tiveram o único e exclusivo intuito de cometer ilegalidades.
"Eu já assisti à venda de fotografias e vídeos de abusos sexuais a crianças em sites da darknet. E há investigações sobre casos de transmissão em direto, através de streaming, de abusos sexuais de menores a pedido de quem paga", refere Ricardo Vieira, que integra a Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica (UNC3T) da PJ.
A Interpol também já tornou pública uma multiplicidade de crimes cometidos através da darknet e, há cerca de um mês, anunciou a detenção de um brasileiro que administrava, a partir da cidade de São Paulo, o maior fórum de língua portuguesa dedicado à divulgação de material pedófilo. Dez dias antes, a mesma organização de coordenação policial revelou que registou, durante os meses de confinamento provocados pela covid-19, o aumento do número de transmissões de vídeos com abusos sexuais a menores na darknet. Motivo: as vítimas passaram muito mais tempo enclausuradas com os agressores e algumas ficaram ao cuidado de pedófilos quando os pais foram infetados com o vírus e hospitalizados.
Top três dos crimes
Ricardo Vieira confirma ao JN que o abuso sexual de menores é um dos principais crimes cometidos na darknet e destaca outros dois: a venda de armas ilegais e o tráfico de droga. "Há sites que até têm um sistema de avaliação, que permite aos utilizadores classificar a qualidade dos produtos e dos serviços aí disponibilizados. Funciona como garantia", acrescenta. Outros, disponibilizam um conversor de bitcoins em euros ou dólares, porque todos os pagamentos realizados na darknet são feitos em criptomoeda. Mesmo que a encomenda seja um assassinato, um tipo de crime sobre o qual há vários rumores mas que as autoridades internacionais nunca conseguiram confirmar.
Maior eficácia da PJ
O inspetor da PJ admite que o avanço da tecnologia" e o "número crescente de utilizadores da Internet" podem contribuir para um maior interesse pela atividade criminosa na darknet. Até porque, diz, "infelizmente, é demasiado fácil" aceder a este mundo virtual. "Hoje, qualquer um pode ser um hacker. Basta ver um vídeo de cinco minutos ou um tutorial no Youtube para saber como aceder e navegar na darknet", refere.
Contudo, também as investigações policiais apresentam níveis de eficácia maiores. "Temos cada vez mais sucesso e os criminosos percebem que não estão tão impunes e anónimos como pensavam", defende Ricardo Vieira, que destaca, ainda, o empenho dos polícias que, mesmo em período de descanso, tentam monitorizar a darknet.
Acesso demasiado fácil, identificação quase impossível
A darknet é "uma rede de comunicações protegida criptograficamente, com o objetivo de salvaguardar o acesso ao conteúdo das comunicações e à identidade dos intervenientes". A definição é de Nélson Escravana, do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, que explica que "o acesso a uma darknet obriga tipicamente à utilização de um software específico". O Tor (The Union Router) é o mais usado. Basta instalar o Tor no computador ou telemóvel e usá-lo como um navegador, tal e qual como o Google Chrome ou o Firefox. A partir daí, rapidamente se chega a sites que apenas estão acessíveis nesta internet alternativa. "Não são necessários conhecimentos especializados. No entanto, utilizadores menos informados podem cometer alguns erros, que comprometem a capacidade do software providenciar o nível de privacidade desejado. Nesses casos, o utilizador pode estar a operar com uma falsa noção de segurança", avisa o especialista.
Pormenores
Criada nos EUA
A rede Tor, que esteve na origem da darknet, começou a ser desenvolvida nos anos 90 do século passado. O conceito foi inventado por investigadores da Marinha norte-americana, como forma de manter as comunicações militares secretas.
Combater ditaduras
A investigação continuou no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Anos depois, o Tor tornou-se ferramenta gratuita e revelou-se fundamental para manter confidenciais as comunicações de ativistas em países ditatoriais. Teve papel preponderante na "Primavera Árabe" e nos protestos em Hong Kong.