Os dirigentes ou meros funcionários das instituições particulares de solidariedade social (IPSS) vão deixar de ser investigados, acusados e condenados por peculato, participação económica em negócio, abuso de poder, corrupção ou outro dos crimes previstos, no capítulo IV do Código Penal, para pessoas no "exercício de funções públicas".
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A mudança resulta de um acórdão de fixação de jurisprudência, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no dia 13 de fevereiro, que concluiu que o conceito de funcionário público estabelecido no Código Penal (CP) não abarca os membros das IPSS.
"As instituições particulares de solidariedade social não devem ser consideradas "organismos de utilidade pública" e, por essa via, não deve ser considerado funcionário, para efeito da lei penal, quem desempenhe ou participe no desempenho da sua atividade", escreveu o juiz relator Carlos Rodrigues de Almeida, com base no argumento de que as IPSS têm estatuto de utilidade pública mas são pessoas coletivas de direito privado.
O acórdão obteve 13 votos a favor e cinco contra, dos conselheiros das secções criminais do Supremo. Os opositores argumentaram que os milhares de IPSS existentes no país, além de terem estatuto de utilidade pública, são financiadas e fiscalizadas pelo Estado e até estão sujeitas ao Código dos Contratos Públicos. Por isso, os seus membros deveriam continuar a ser tratados como funcionários públicos, para efeitos penais, concluíram.
Arquivamentos à vista
Nos últimos dias, o JN constatou que o acórdão, embora ainda muito desconhecido, está a causar preocupação ao pessoal da Polícia Judiciária e do Ministério Público que lida com processos sobre as IPSS. Estes são muito frequentes e numerosos, e as fontes ouvidas antecipam vários cenários possíveis a curto prazo: requalificação dos ilícitos por que o Ministério Público registou o inquérito ou acusou já os arguidos, para que o processo possa prosseguir, ainda que por crimes com penas mais leves (ver texto ao lado sobre crimes); arquivamento de casos em que a requalificação não seja possível, porque os novos crimes implicavam queixa ou já prescreveram (com penas mais curtas, prescrevem mais depressa); proibição do recurso a alguns meios de obtenção de prova; e libertação de presos.
A longo prazo, assevera um inspetor-chefe da PJ, "há um conjunto de factos que até agora tinha relevância criminal e vai deixar de ter". E resta saber, também, se os efeitos do acórdão do Supremo se vão estender às outras entidades que, como as IPSS, têm utilidade pública, mas são privadas.
O acórdão do Supremo resultou de um recurso de uma dirigente do Centro Infanto-Juvenil da Associação de Socorros Mútuos Freamundense. A arguida fora condenada numa multa de 480 euros, por peculato de uso, em decisão do Tribunal de Paços de Ferreira.
A Relação do Porto confirmou a condenação, considerando que "a arguida, pelo facto de trabalhar numa IPSS, preenchia os requisitos de funcionária para efeitos penais".
relação de Guimarães vence
Invocando um acórdão do tribunal da Relação de Guimarães de sentido contrário, a defesa pediu então ao Supremo que decidisse qual entendimento deveria prevalecer. E os conselheiros inclinaram-se maioritariamente para o de Guimarães, concluindo que o legislador, quando escreveu no artigo 286 do CP que é funcionário quem "desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar", não estava a pensar nas IPSS.
Só uma nova lei pode contrariar acórdão
O acórdão de fixação de jurisprudência proferido no mês passado pelo Supremo Tribunal de Justiça é definitivo e irrecorrível. Só pode ser contrariado se houver uma alteração da lei nesse sentido. Mas não é comum o legislador fazê-lo.
Crimes substituíveis
Peculato - O peculato é o crime cometido pelo funcionário que ilegitimamente se apropria de dinheiro ou qualquer coisa móvel ou imóvel ou animal, que esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções. Tem uma moldura penal de um a oito anos de prisão. Não podendo ser mais imputado aos membros das IPSS, poderá ter como alternativa o "abuso de confiança". Este tipo de crime é atribuível a quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel ou animal. Se o respetivo valor for inferior a 5100 euros, o procedimento criminal depende de queixa e a pena é de multa ou de prisão até três anos. Acima daquele valor, não é preciso queixa e a pena pode chegar a oito anos.
Participação económica em negócio - Também integra o capítulo dos crimes cometidos no exercício de funções públicas, com uma pena de até cinco anos de prisão. Podia ser imputado, até agora, a responsáveis das IPSS que, com intenção de obter participação económica ilícita, lesassem, em negócio jurídico, os interesses patrimoniais que lhes cumpria defender. A alternativa pode ser o crime de infidelidade, que também pune atos de má gestão, com pena de até três anos. Mas, para isso, é preciso que alguém exerça o direito de queixa - e não é toda a tente que o tem.
Abuso de poder - É outro dos crimes que não podem ser imputados a quem não for reconhecido como funcionário. Comete-o, arriscando pena até três anos, aquele que abusa de poderes ou viola deveres inerentes às suas funções, para obter benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outro. O crime de infidelidade também pode ser uma alternativa, mas as dúvidas ainda são muitas.
Corrupção - Os crimes de corrupção passiva ou ativa previstos no Capítulo IV Código Penal deixam de ser atribuídos a elementos das IPSS. A pena da corrupção passiva é mais pesada, podendo chegar a dez anos e oito meses de prisão. A alternativa, para os membros das IPSS, será o crime de corrupção passiva no setor privado, previsto na lei 20/2008. Tem pena até cinco anos, mas pode integrar-se numa moldura de um a oito anos, caso o crime distorça a concorrência ou prejudique terceiros.