Um automobilista causou um acidente, com uma vítima mortal, menos de três horas após ter sido detido pela PSP por conduzir com uma taxa de álcool no sangue superior a 1,4 gramas por litro (g/l).
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O caso aconteceu em maio de 2023, entre o Porto e Matosinhos, e, no mês passado, o condutor, de 29 anos e residente em Vila do Conde, foi acusado de um crime de homicídio negligente, em concurso aparente com um crime de condução perigosa. O arguido responderá também, no julgamento marcado para o Tribunal de Matosinhos, por um crime de desobediência. O condutor só conseguiu voltar à estrada devido a uma alteração legislativa de 1999.
Pelas 3.45 horas de 5 de abril de 2023, sexta-feira, J. A. conduzia um Volkswagen Polo, no centro do Porto, e foi mandado parar por uma patrulha da PSP, na Praça do Coronel Pacheco. Após mostrar os documentos, foi sujeito a um “teste do balão” e acusou uma taxa de álcool no sangue de 1,43 g/l.
Como o valor registado era considerado crime, o condutor recebeu voz de detenção. Contudo, por imposição da lei, foi libertado pouco depois e notificado para se apresentar nos serviços do Ministério Público (MP), do Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto, na segunda-feira seguinte. Na mesma ocasião, também foi notificado de que se encontrava proibido de conduzir nas 12 horas subsequentes.
“Leviano, temerário, imprudente”
A acusação do MP, consultada pelo JN, não descreve o que J. A. fez nos momentos seguintes a ter sido libertado pela PSP e, por esse motivo, desconhece-se onde esteve até perto das 6 horas. Certo é que o automobilista voltou ao volante do Volkswagen Polo e, pelas 6.05 horas, circulava na A28, no sentido Porto-Matosinhos.
Entre o NorteShopping e as bombas de gasolina, o carro de J. A. embateu, a grande velocidade, na traseira de um Opel Corsa que seguia à frente, fazendo com que esta fosse contra outro automóvel e aos rails de proteção. A condutora do primeiro carro abalroado, L. P., de 51 anos, morreu no local.
Após o acidente, e na posse da notificação que o proibia de conduzir durante 12 horas, J. A. foi submetido a novo teste de alcoolemia e voltou a acusar uma taxa proibida.
“O acidente ficou a dever-se exclusivamente ao modo leviano, temerário, imprudente e descuidado como o arguido conduziu o seu veículo, não respeitando os limites de velocidade do local, conduzindo com uma taxa de álcool de 0,88 g/l e não respeitando a proibição de conduzir que sobre si impedia em virtude de ter sido fiscalizado nas horas antes com uma taxa de álcool de 1,435 g/l”, descreve a procuradora.
A magistrada acusou J. A. dos crimes de homicídio negligente, em concurso aparente com um crime de condução perigosa, e desobediência.
Mudança na lei impede detenção prolongada
A Polícia não tem forma legal de manter detido um condutor alcoolizado, mas nem sempre foi assim. Até 1999, explica o ex-sargento do Núcleo de Investigação Criminal de Acidentes de Viação da GNR, Paulo Pinto, “um condutor apanhado em flagrante delito por condução sob o efeito de álcool permanecia detido nas instalações policiais até ser presente ao juiz”.
“Isso acontecia porque o Código Processo Penal (CPP) anterior não estabelecia mecanismos alternativos claros para garantir que o arguido comparecesse em tribunal. A prática comum era manter o indivíduo detido como forma de assegurar a sua apresentação perante a autoridade judicial”, acrescenta.
Paulo Pinto diz ainda que “a detenção prolongada estava fundamentada no entendimento de que, por se tratar de um crime em flagrante delito, a prisão preventiva era uma medida proporcional e necessária, independentemente da gravidade do crime ou do risco concreto de fuga”.
Libertados rapidamente
Porém, tudo mudou em 1999. O antigo sargento da GNR recorda que “o novo CPP passou a privilegiar o uso do Termo de Identidade e Residência (TIR), como medida preferencial, sempre que não houvesse perigo de fuga ou continuidade da conduta criminosa”. “O crime de condução sob influência de álcool, embora continue a ser considerado crime em flagrante delito (artigo 292.º do Código Penal), deixou de implicar detenção obrigatória nas instalações policiais”, justifica.
Com a lei atual, os condutores que, submetidos a teste de alcoolemia, acusem uma taxa igual ou superior a 1,20 g/l são detidos. Todavia, nos casos em que a Polícia tiver um aparelho de mediação quantitativo no local da fiscalização, nem sequer ser levados para instalações policiais.
A legislação impõe que, formalizado o processo burocrático, os condutores, mesmo que continuem alcoolizados, sejam libertados com TIR, notificados para comparecer em tribunal e, no âmbito de um processo sumário, julgados no prazo de 48 horas. Em menos de uma hora, podem regressar ao carro que conduziam embriagados.
“Deveria ser considerada uma medida proporcional que, nos casos de se registar uma taxa crime, garantisse que o condutor não voltasse a conduzir alcoolizado”, propõe Paulo Pinto.
Bateu a mais de 140 km/h e sem travar
O condutor agora acusado dos crimes de homicídio negligente, em concurso aparente com um crime de condução perigosa, e desobediência começou por justificar o acidente com um “apagão” sofrido quando estava ao volante. A versão foi contada à PSP, na madrugada do embate, mas seria alterada 20 dias depois.
Interpelado pelo perito da seguradora, J. A. já disse que foi surpreendido por um carro vindo da faixa de aceleração existente junto às bombas de gasolina da A28 e que tentou desviar-se para o lado esquerdo antes do choque.
Porém, a perícia feita ao sinistro, feita pela empresa Foren a pedido do MP, mostrou que o carro de J. A. circulava a mais de 140 km/h, num local em que a velocidade máxima é de 80 km/h, e que embateu na traseira do Opel Corsa da vítima mortal.
A acusação garante que o arguido “não travou, nem imobilizou o seu veículo” antes de colidir no carro da frente, que circulava a menos de 90 km/h. E assegura que esta segunda viatura “bloqueou as rodas traseiras devido à deformação estrutural que sofreu e produziu no pavimento uma marca de derrapagem com 42,04 metros, até ao seu ponto de imobilização”.
Já depois de embater no Opel Corsa, o Volkswagen Polo de J. A. ainda circulava a “65,23 km/h no momento da colisão” com um Fiat Punto, que também circulava na A28.
Vítima foi arguida por homicídio negligente
A condutora do terceiro carro envolvido no acidente de 5 maio de 2023 foi, tal como J. A., constituída arguida pela prática de um crime de homicídio negligente. Mas, contrariamente ao automobilista, não foi acusada.
Segundo a procuradora, “das diligências realizadas, apesar de ter resultado apurado que a mesma foi interveniente no acidente, não se apurou que a mesma tivesse incorrido em qualquer conduta, por ação ou omissão, que tivesse contribuído para o desfecho” do desastre mortal.
Para a magistrada, não foi recolhida “qualquer prova que permita imputar à arguida a prática de um qualquer ilícito criminal” e, nesse sentido, o inquérito relativamente à condutora foi arquivado.
A perícia feita ao sinistro apurou que o Fiat Punto da condutora circulava à frente do Opel Corsa da vítima mortal e, mesmo assim, foi atingido pelo Volkswagen Polo de J. A. após o primeiro choque. Todas as viaturas circulavam na faixa da direita da A28.
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Polícia viu notificação
Um agente da PSP chamado ao local do acidente viu que J. A. estava na posse da notificação, emitida três horas antes, que o proibia de conduzir durante 12 horas.
Prescindiu da contra-análise
O arguido acusou uma taxa de álcool no sangue de 1,56 g/l, valor ao qual foi deduzido a margem de lei prevista na lei e que fixou a taxa em 1,43 g/l. Após o teste feito pela PSP, J. A. prescindiu da contra-análise.
Abdicou do contacto com advogado
Quando foi fiscalizado pela PSP, no Porto, o condutor alcoolizado prescindiu do contacto com o advogado e com a família.