Venda de óxido nitroso não é crime e dá apenas multa. Apreensões estão a crescer e há um alerta para efeitos graves na saúde e relação com mortes em Inglaterra.
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A "droga do riso" está a ser distribuída em bares e discotecas clandestinos sem controlo. De fácil produção num laboratório improvisado ou desviado de consultórios médicos, principalmente de dentistas, as botijas de óxido nitroso, um anestesiante de uso restrito hospitalar usado para consumo recreativo, chegaram em força e deixaram as autoridades policiais perplexas, sobretudo na Grande Lisboa. Ainda ontem, a GNR de Setúbal apreendeu 11 garrafas na Moita.
A produção ou distribuição do óxido nitroso não é crime porque os seus componentes químicos (nitrogénio e oxigénio) não são estupefacientes, mas o seu fabrico e venda não autorizados são objeto de contraordenação que pode chegar aos dois mil euros. Porém, mais grave é que o abuso deste medicamento pode causar dependência, danos cerebrais permanentes ou até a morte por asfixia.
Relaxamento e euforia
O óxido nitroso foi sintetizado pela primeira no início do século XVIII, quando era utilizado como gás hilariante para efeitos recreativos e festas da alta sociedade. Foi sintetizado pela primeira vez em 1772 pelo químico inglês Joseph Priestley. Mais tarde descobriu-se que tinha efeitos analgésicos e proibiu-se o seu uso recreativo.
Ricardo, nome fictício, 17 anos, experimentou inalar o gás que faz rir do balão em que por vezes é oferecido num bar em Odivelas. Sentiu um relaxamento total e euforia durante cerca de 30 segundos. Estava com três amigos, um dos quais, uma rapariga, recusou-se a consumir por temer os efeitos e por saber que, no Reino Unido, já foi relacionado com 16 mortes.
"Uma empregada inalou sozinha um balão e desmaiou por segundos, foi assustador", diz a amiga, sob anonimato. "O dono do bar ofereceu o balão, disse como devíamos fazer - inalar uma primeira vez, expelir de volta para o balão e inalar de volta para que surtisse efeito - mas não quis fazê-lo", contou ao JN a jovem, de 25 anos.
A primeira apreensão aconteceu numa discoteca clandestina no Seixal, em abril, e desde então têm sido cada vez mais frequentes. De uma só vez, no Monte da Caparica, foram apreendidas 164 botijas pela GNR numa carrinha com três indivíduos, por mero acaso, numa ação de patrulha.
"Já é um problema"
O Ministério Público abriu inquérito e delegou na GNR a investigação, a primeira do género em Portugal, para perceber como as botijas chegam às ruas, o que não se afigura fácil. É que, para além de não se tratar de estupefaciente, os detentores não possuem antecedentes criminais que os possam relacionar com um eventual circuito de tráfico. Para o comandante da GNR de Almada, Nuno Taveira, "o óxido nitroso é já um problema no Monte da Caparica e a sua distribuição parece ser tão ou mais lucrativa do que o tráfico de droga".
Em Lisboa, apurou o JN, a Polícia Judiciária já se deparou, pelo menos por duas vezes, com este gás em buscas, em inquéritos de outros âmbitos, mas tal não resultou em investigação, apenas contraordenação emitida pelo Infarmed.
Ao JN, o Infarmed diz ter instaurado processos de contraordenação social pelo uso e obtenção de óxido nitroso fora do ambiente hospitalar e clínico. Sem quantificar ou especificar onde, o organismo afirma-se disponível para colaborar com as polícias e alerta "para o perigo da má utilização de medicamentos (no geral), e para os perigos para a saúde pública que esta má utilização pode causar".
Perguntas e respostas
O que é a droga do riso?
É um composto químico constituído por nitrogénio e oxigénio (N2O), um gás incolor e sem cheiro. O seu uso autorizado verifica-se enquanto medicamento sujeito a receita médica, como anestésico, só ou com outros anestésicos e relaxantes musculares e também em intervenções em medicina dentária, obstetrícia e em otorrinolaringologia.
Como se consome?
É inalado a partir de balões do gás contido em cartuchos ou pela descarga direta na boca. Como é de efeito curto, os consumidores tendem a repetir o consumo. Desde 2006, pelo menos 16 mortes foram associadas a esta substância no Reino Unido, sobretudo por asfixia, porque por vezes é consumido com sacos de plástico na cabeça ou em espaços fechados, como carros.
Que efeitos e riscos comporta?
Euforia, desinibição psicomotora, alteração do estado da consciência, estado dissociativo com sensação de desligamento do ambiente circundante, despersonalização e desrealização. Podem também ocorrer sensações de calor, frio ou aumento de energia. Habitualmente surge também uma sensação de relaxamento e de sedação. Podem ocorrer distorções auditivas, como eco e zumbidos. Visão turva e alteração da perceção das cores e das distâncias são outros efeitos possíveis. O uso sucessivo pode provocar confusão, paranoia e ansiedade. A longo prazo, há registos de alterações na memória, zumbidos, alterações no sistema imunitário, repercussões no feto, se consumido na gravidez, depressão e psicose.
É uma substância proibida?
O fabrico, introdução no mercado, comercialização, distribuição, intermediação, fornecimento ou venda ao público, da substância protóxido de azoto sem as autorizações ou registos legalmente exigidos, constitui contraordenação punível com coima a partir de dois mil euros.
Vigilância
SICAD alerta para perigo de dependência psicológica
O Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) alerta que o óxido nitroso pode causar dependência. Ao JN, por escrito, o SICAD avança que, apesar do "baixo potencial de adição, os efeitos de curta duração tendem a levar a um consumo repetido, pela procura da sensação de prazer. Há evidência do desenvolvimento de dependência psicológica com o consumo reiterado de óxido nitroso".
Em Portugal, o consumo deste gás não assume "dimensões significativas geradoras de preocupação", segundo a mesma fonte. "Nos pedidos de tratamento e no que se refere aos últimos três anos, não são reportados admissões nos serviços tendo como problema aditivo o uso deste tipo de substâncias", adianta.
No âmbito de um projeto europeu junto de jovens (ESPAD) apoiado pelo Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, realizado este ano em Portugal, o SICAD nota que os registos de uso deste tipo de substâncias inalantes surgem como "muito residual". No ESPAD- European School Survey Project on Alcohol and Other Drug, a questão do consumo de óxido nitroso não é colocada no questionário. A pergunta feita genericamente é sobre inalantes como benzinas, diluentes, colas e sprays.
Casos em Portugal
Primeira apreensão em discoteca no Seixal
A primeira apreensão aconteceu no Seixal, numa festa numa discoteca clandestina a 25 de abril. A PSP apreendeu duas botijas de óxido nitroso e balões.
GNR chega a vendedor de botijas
Em Albufeira, a 27 de maio, a GNR apreendeu seis botijas de óxido nitroso. Os militares entraram num bar onde havia clientes com balões na mão e a inalar o gás. Encontraram uma botija atrás do balcão do bar e, no dia seguinte, localizaram o fornecedor que tinha cinco botijas.
Recorde no Monte da Caparica
A 18 de maio, no Monte da Caparica, Almada, os militares da GNR apreenderam 164 botijas numa carrinha, durante patrulha. Três suspeitos, com idades entre 27 e 30 anos, sem antecedentes criminais, foram identificados e alvos de contraordenação.
Mais 19 botijas em Almada
A GNR apreendeu, de novo no Monte da Caparica, Almada, a 4 de junho, mais 19 botijas. Dois indivíduos sem antecedentes criminais, foram identificados e alvos de contraordenação. Nove dias depois, apreendeu outra botija numa festa ilegal.
Caso de roubo leva a nova apreensão
A GNR de Albufeira apreendeu cinco botijas no dia 9 de junho, durante buscas domiciliárias a dois suspeito de um roubo por esticão de um telemóvel a um jovem, em Loulé.
Entrevista
Também pode haver laboratórios de óxido nitroso
Que danos causa o óxido nitroso?
O óxido nitroso tem um efeito estimulante no sistema nervoso simpático e para as pessoas com patologias cardíacas, ou diabetes, por exemplo, pode levar a arritmias e paragens cardíacas. No meio de uma festa ninguém sabe ajudar. É perigoso porque apenas médicos qualificados sabem manuseá-lo. Pode ser lesivo a nível cerebral e colocar uma pessoa em coma. Como é um gás que se difunde pelos pulmões, chega lá mais depressa do que o oxigénio e pode provocar uma hipoxia cerebral. E quanto maior for a concentração, mais rápido chega ao cérebro, daí a hipoxia.
Quais os cuidados em ambiente hospitalar?
O gás chega ao bloco operatório puro, canalizado, numa concentração de 100%, mas nós fazemos a mistura, nunca o usamos a 70% com 30% de oxigénio, pois causa dano cerebral. É um gás pouco potente e foram sendo sintetizados outros, mais caros, que o tornaram num gás de recurso. Muitos anestesistas já nem o usam e no hospital são para casos especiais. Nos dentistas voltou a ser usado com mais frequência numa mistura de 50% de ar desde há dez anos, em botijas, mas não teve grande sucesso porque os dentistas não se sentem confiantes para reanimação cardíaca.
Como pode chegar às ruas?
Há duas opções, ou através do mercado negro ou produção própria. Acredito que seja a segunda alternativa porque é um gás bastante fácil de produzir. Se há laboratórios de droga sofisticada, cocaína ou heroína, também pode haver de óxido nitroso. Mas tem que haver um cuidado - que eu não acredito que haja - em relação à concentração. Acima de 70% causa danos cerebrais.