Organizações criminosas usam transportadoras internacionais para fugir às autoridades. GNR apreendeu 15 milhões de cigarros e 13,5 toneladas de folha de tabaco. Fraude fiscal ultrapassaria cinco milhões.
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Entre 2020 e 2021, a GNR apreendeu mais de 15 milhões de cigarros e quase 13,5 toneladas de folha de tabaco traficados através de encomendas postais. Este método criminoso, que cresceu com a pandemia, retirou dos cofres do Estado 5,2 milhões de euros em impostos e é, cada vez mais, um alvo da Unidade de Ação de Fiscal (UAF) da Guarda. Mas o método também é usado para fazer circular drogas ou armas de forma clandestina, e vários casos têm sido detetados, ao ponto de justificarem até um alerta das Nações Unidas para o fenómeno.
Apesar dos meios insuficientes, a valência da GNR que tem por missão fazer frente ao contrabando nas várias formas que as redes criminosas vão adotando para fugir às polícias intensificou a fiscalização a plataformas logísticas das transportadoras internacionais e mercados abastecedores. O seu principal foco tem sido o tabaco, pois é certo que, por ali, transitam, todos os dias, caixas de papelão cheias de cigarros e folha de tabaco oriundas, sobretudo, de Espanha, e destinadas a pequenos consumidores ou a criminosos que se dedicam a comercializar estes bens para revendedores sem liquidar a fatura fiscal.
"Fenómeno brutal"
"Já apreendemos desde embalagens com apenas meio quilo até encomendas com 200 quilos de folha de tabaco. É um fenómeno brutal", descreve o comandante do Destacamento de Ação de Fiscal de Coimbra. O major Rui Chantre explica que na base deste crime estão "organizações de países do Leste", como a Lituânia, Croácia ou Rússia que, nos últimos anos, "mudaram a sua operação para o Sul de Espanha", para aproveitar as condições climáticas propícias ao cultivo de tabaco e uma lei mais permissiva relativamente à venda de produtos tabágicos. O lucro é grande: "Chegámos a encontrar cinco mil euros dentro de uma sapatilha", justifica o major.
Do outro lado da fronteira, estes autênticos cartéis embalam os cigarros ou a folha de tabaco (que em muitos casos é triturada) e enviam-nos para Portugal, mas também para os restantes país europeus, através de transportadoras cujos camiões não são sujeitos a fiscalizações permanentes.
A circulação destas encomendas postais é, quase sempre, controlada apenas em ações planeadas pela GNR de fiscalização às plataformas logísticas. Como a que foi realizada na semana passada, num entreposto de Coimbra, e que foi acompanhada, em exclusivo, pelo JN.
Cães treinados não falham
A operação começou cedo, pelas seis horas, quando o movimento na plataforma ainda era muito reduzido, e envolveu 13 militares da Subunidade de Ação Fiscal de Coimbra, auxiliados por três cães treinados para detetar tabaco. 25 minutos depois, Lusa, uma perdigueira-portuguesa, já apontava para uma pequena caixa que, se assim não fosse, passaria despercebida entre as milhares de encomendas existentes no armazém. Góral, o pastor-belga que também integra um dos binómios do Grupo de Intervenção Cinotécnico da Unidade de Intervenção da GNR, reforçou o alerta que levou à descoberta de quatro quilos de folha de tabaco.
"Os cães são os nossos scaners", elogia o alferes Amílcar Pereira. Foi este oficial da UAF que confirmou, junto de um colaborador da transportadora, que a caixa vinda da Alemanha e com destino ao Sardoal, no distrito de Santarém, não era a primeira encomenda enviada do mesmo remetente para igual destinatário. "Há vários registos ao longo de 2020. Esta informação será passada ao Núcleo de Investigação de Crimes e Contraordenações, para que se possa perceber qual seria o destino a dar à folha de tabaco. E será levantado um auto de contraordenação ao destinatário, que implica uma coima entre os 1500 e os 165 mil euros", referiu o alferes.
Pandemia aumenta tráfico
Para o major Rui Chantre, a "guerra" contra o tráfico de tabaco através de encomendas postais "não se consegue ganhar com facilidade". Até porque é dificultada pelos esquemas ardilosos usados por traficantes e consumidores. "Em muitos casos, o nome e a morada do destinatário são falsos. O único dado verdadeiro é o número de telefone, que o motorista da transportadora usa para informar que chegou ao local. Nessa ocasião, o destinatário pede que a encomenda seja entregue uma rua ao lado", revela.
O comandante do Destacamento de Ação de Fiscal de Coimbra não tem dúvidas de que a pandemia fez crescer o tráfico de tabaco através de encomendas postais e defende o reforço dos meios humanos para combater um fenómeno criminal que ameaça os cofres do Estado. "A UAF é a única a fiscalizar esta matéria e tem pouco mais de 360 elementos. É um número insuficiente, mas tem havido progressos e a expectativa é que cresça", assume.
Pistolas, heroína e canábis ao domicílio
As encomendas postais não servem apenas para o contrabando de tabaco. Este meio, discreto e eficaz, serve também para traficar armas de fogo e droga. O Estudo Global do Tráfico de Armas 2020, do Gabinete das Nações Unidas Contra a Droga e o Crime, já destacava este método.
Na ocasião, o então diretor do Departamento de Armas e Explosivos (DAE) da PSP, superintendente Pedro Moura, confirmava que "as armas [chegam a Portugal] por uma empresa de correio expresso/transportadora internacional de mercadorias, que as traz em encomendas postais ou encomenda normal, expedida pelo armeiro na Eslováquia, após ter sido adquirida e paga na Internet".
Em maio passado, uma investigação de 22 meses culminou na detenção de três traficantes e na apreensão de 23 armas de fogo, durante a segunda fase da Operação Flobert (no total, foram detidas sete pessoas, duas de nacionalidade ucraniana e chinesa, e apreendidas 176 armas). Em 2017, a Operação Detonadora, também da PSP, desmantelava um esquema em que as armas eram encomendadas em sites estrangeiros e chegavam a casa dos destinatários, em Portugal, via empresas de transportes expresso, sem controlo das autoridades.
No tráfico de drogas há também vários exemplos de como esta via é apetecível para as organizações criminosas. Em janeiro deste ano, a Polícia Judiciária deteve, na Madeira, um sexagenário que recebia droga em encomendas postais. E apreendeu cinco mil doses de haxixe e heroína.
Em fevereiro passado, canábis produzida em larga escala em armazéns de Oliveira de Azeméis e de Vila Verde era embalada em vácuo e exportada para os Países Baixos, em encomendas postais levadas por transportadoras. Cinco elementos da rede - quatro asiáticos e um português filho de asiáticos - foram detidos.
Caso: Mãe e filha tinham fábrica de cigarros em casa
Aos milhões de cigarros e às toneladas de folha de tabaco ilegais detetados nas plataformas logísticas, somam-se as apreensões efetuadas em fiscalizações rodoviárias. Semelhante à que aconteceu em setembro de 2019, na Figueira da Foz, e que permitiu identificar uma família que importou, em apenas três meses, 270 quilos de tabaco da Alemanha e da Lituânia e que tinha armazenado, na garagem da própria residência, mais 407 quilos de produto ilegal, sobre o qual deviam ter sido liquidados mais de 92 mil euros em IVA e imposto de tabaco.
Segundo a acusação do Ministério Público (MP), militares da UAF encontraram, numa viatura de uma transportadora, seis caixas com 137 quilos de tabaco, sem estampilha fiscal nem documentos que provassem o pagamento de impostos. As caixas tinham sido expedidas da Alemanha e destinavam-se a uma habitação na Figueira da Foz.
Foi nessa casa que os guardas do Núcleo de Investigação de Crimes e Contraordenações da UAF encontraram um moinho para triturar tabaco, assim como uma guilhotina e outra maquinaria para produzir cigarros.
Para o MP, mãe, viúva de 76 anos, e filho, desempregado de 47, gizaram um plano "com o propósito de distribuir e vender tabaco introduzido irregularmente em Portugal", sem pagar os impostos devidos. Os dois viram o MP propor a troca de uma pena de prisão pelo pagamento de uma multa de 600 euros e de mais de 92 mil euros às Finanças
Ainda esta semana, a UAF e a Guardia Civil espanhola desmantelaram uma rede apreendendo mais de dez toneladas de tabaco triturado, cerca de um milhão de cigarros, 144 mil euros em dinheiro e quatro quilos de canábis em 25 buscas em Viana do Castelo, Porto e Braga, e nove em Espanha. A fraude ao Estado ascenderia a 5,96 milhões de euros.
Outros produtos
33 069 litros de bebidas alcoólicas apreendidas em fiscalizações a plataformas logísticas, entre 2020 e 2021. Caso fosse introduzida no mercado negro, esta quantidade de bebidas significava uma fraude fiscal num montante superior a 113 mil euros.
23 057 peças de vestuário e calçado que estavam a ser contrabandeadas através de encomendas postais e foram apreendidas. Caso fossem pagos impostos sobre estes produtos, os cofres do Estado arrecadavam, pelo menos, 222 mil euros.
2015 comprimidos contrafeitos foram apreendidos pela Subunidade da Ação Fiscal de Coimbra, no ano passado. Em todo o país foram detetados ainda litros de combustível ilegal e até grandes quantidades de dinheiro.