Criação de "empresas-veículo" que ficaram com as barragens sob suspeita do MP. Fusão entre firmas criadas pela EDP e consórcio francês no centro da investigação.
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Uma engenharia financeira que chama "fusão" a uma venda de seis barragens, com a criação de empresas paralelas, apenas destinadas a poupar impostos. Com a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) a permitir o negócio, sem acautelar o interesse público, em que o Estado terá sido prejudicado em cerca de 300 milhões de euros. São estas as suspeitas que levaram ontem o Ministério Público (MP) e a Autoridade Tributária (AT) a realizar buscas na EDP, na APA, na empresa Engie (líder do consórcio francês que comprou as barragens), em escritórios de advogados e em outras empresas do setor hidroelétrico. Foram apreendidos documentos relativos ao negócio de 2,2 mil milhões de euros, assim como computadores e outro material informático, com o objetivo de recolher provas sobre as suspeitas do crime de fraude fiscal.
De acordo com informações recolhidas pelo JN, o inquérito do Departamento de Investigação e Ação Penal (DCIAP) foi aberto este ano, para investigar os contornos da criação de empresas por parte da EDP e da Engie, que permitiram, só na venda, uma poupança de 120 milhões em imposto do selo.
Capital de 50 mil euros
Em dezembro de 2019, o consórcio da Engie, que também envolve o Crédit Agricole Assurances e Mirova criou a sociedade "Águas Profundas", com um capital de somente 50 mil euros. Apenas dois dias depois, a EDP comunicou à Comissão do Mercado de Valores Mobiliário (CMVM) ter chegado a um acordo para vender as barragens de Miranda, Bemposta, Picote, Baixo Sabor, Foz Tua e Feiticeiro.
Três meses depois, a União Europeia aprovou o negócio e, em agosto do ano passado, foi a vez da EDP criar uma nova sociedade, que viria a chamar-se Camirengia Hidroelétricos. Em novembro de 2020, após ter recebido um parecer favorável da APA, o Ministério do Ambiente anunciou ter dado um aval positivo ao negócio.
Entretanto, um mês depois, a empresa criada pela EDP separa-se da multinacional elétrica, mas mantém como presidente Miguel Setas, um administrador da EDP que viria a ser substituído apenas dois dias depois por um francês ligado à Engie. Ao mesmo tempo, a "Águas Profundas", criada pelo consórcio francês, troca o nome da firma para Movhera I e faz um aumento de capital de 332 milhões.
Um mês depois, a Camirengia, para onde a EDP tinha transferido as barragens (ativos) e 28 trabalhadores afetos à manutenção das centrais, é incorporada na Movhera, da multinacional francesa. Na altura, a operação de fusão foi justificada pelas empresas por "imperativos de simplificação e racionalização organizacional, com a inerente redução de custos, decorrente da duplicação de estruturas".
Mas o Fisco já estava de olho no negócio, depois de vários deputados da Assembleia da República terem alertado para uma "borla fiscal". É que a fusão permitiu evitar a figura de compra e venda, poupando, só aí, 120 milhões de euros em imposto do selo.
Mas não é a única "poupança" que está na mira do MP. Foram recolhidos documentos sobre IMT, IRC, IMI e IVA do negócio, que foi escrutinado, desde a primeira hora, pelo Movimento Cultural Terras de Miranda (MCTM), a associação que remeteu o caso ao MP.
"Há um negócio efetivo, montado para evitar o pagamento de impostos, que representam 300 milhões de euros. Não é só o imposto do selo. E o Estado, que avisámos em tempo útil, perdoou", afirmou ao JN Óscar Afonso, do MCTM e também presidente do Observatório de Economia e Gestão de Fraude.
Perguntas e respostas
Desde quando é que o negócio das barragens é polémico?
A revisão dos contratos de concessão de 26 barragens da EDP ocorreu em 2007, quando era primeiro-ministro José Sócrates, e custou è elétrica 759 milhões de euros. Na altura, o procedimento suscitou dúvidas, como a de saber se teria sido necessário um concurso público. A Comissão Europeia acabou por concluir, em 2017, que não havia desconformidade com as disposições legais comunitárias. Da negociação resultou que algumas concessões se prolongam até 2090.
As concessões prolongadas têm alguma coisa a ver com a atual venda de seis barragens?
A EDP está a vender seis barragens do seu universo - Feiticeiro, Miranda, Bemposta, Picote, Baixo Sabor e Foz Tua - por 2,2 mil milhões de euros, ao consórcio francês liderado pela Engie, num negócio iniciado em dezembro de 2019 e concretizado um ano depois, mas a transmissão das concessões está a suscitar dúvidas.
Qual a suspeita em causa?
O primeiro a levantar a questão sobre o risco de recurso a um esquema de planeamento fiscal agressivo no negócio foi o Movimento Cultural Terras de Miranda, que se reuniu com o ministro do Ambiente em setembro de 2020 e, desde então, tem vindo a acusar o Governo de conceder uma "borla fiscal" à EDP de cerca de 300 milhões, 110 dos quais referentes só ao imposto do selo.
Há ou não impostos em falta?
Na primeira ida à comissão parlamento do Ambiente sobre esta matéria, em janeiro, já o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais argumentara que as barragens têm o estatuto de "utilidade pública", integrando, por isso, o inventário geral do património do Estado, pelo que não estão sujeitas aos impostos de património e, consequentemente, não há lugar ao pagamento do imposto do selo. Pelo menos, na verba relativa à transmissão de imóveis.
Então, o que apura o Fisco?
Já quanto ao imposto do selo relativo à transmissão de concessões, Mendonça Mendes lembrou, na altura, que este é um imposto "autoliquidado pelo contribuinte, tendo de ser declarado até ao dia 20 do mês seguinte à realização da operação. E é esta parcela, de 110 milhões de euros, que está em investigação pela Autoridade Tributária.
Como reagiram os partidos?
O Bloco de Esquerda e o PSD têm sido particularmente críticos da operação. Mariana Mortágua tem acusado a EDP de "utilizar abusivamente um benefício fiscal" ao "mascarar esta operação e ao tratar uma venda como se fosse uma mera transmissão". Já o partido de Rui Rio solicitou, em março, à Procuradoria-Geral da República um pedido de averiguação da venda, considerando que o Governo favoreceu a EDP e concedeu-lhe uma "borla fiscal".
O que diz a EDP?
O presidente-executiva da EDP, Miguel Stilwell, esteve também na comissão parlamentar, a 16 de março, onde garantiu que a empresa "cumpre escrupulosamente a lei". Em causa a criação de uma nova empresa, para a qual foram transferidos todos os ativos a vender à Engie, bem como os trabalhadores, contratos e outras responsabilidades. A EDP aplicou o "único modelo possível" para "garantir a manutenção de todos os compromissos necessários para o normal funcionamento das barragens".
Como reagiu o Governo?
O ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, tem dito que o Governo não impediu a vendas das barragens "porque não quis", na medida em que "vê com bons olhos a diversificação dos donos das fontes de energia.