O Estado português terá de pagar uma indemnização de 34 mil euros a um doente mental que, por falta de espaço no Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, permaneceu meio ano preso na ala psiquiátrica da cadeia de Caxias.
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Segundo o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que tornou pública a condenação de Portugal nesta terça-feira, o tempo passado na prisão por um professor de música de Évora, considerado inimputável por sofrer de esquizofrenia, agravou o seu estado de saúde. Ao JN, Vítor Carreto, advogado do recluso, critica a falta de investimento na saúde mental e lembra que há cerca de 200 pessoas na cadeia que deviam estar em clínicas psiquiátricas.
Rui M., hoje com 48 anos, era um reputado professor de música em Évora, mas a doença, diagnosticada em 2002, alterou-lhe significativamente o comportamento. Tanto que, em setembro de 2019, foi considerado culpado dos crimes de ameaça e assédio sexual à antiga namorada.
Contudo, o Tribunal de Évora considerou-o inimputável, dando como provado que os crimes foram cometidos num quadro dominado pela esquizofrenia paranóide, e determinou a sua prisão preventiva, por um período máximo de três anos, em instalações psiquiátricas. Na mesma ocasião, os juízes decidiram suspender o internamento com a condição de que Rui M. se submetesse a um tratamento no Hospital Espírito Santo de Évora.
Supremo Tribunal reconhece falha, mas não age
Condição que, porém, o doente mental não cumpriu. E, enquanto faltava às consultas, Rui M. foi alvo de outras acusações graves, o que levou a que as autoridades considerassem que se encontrava numa situação vulnerável. Em fevereiro de 2021, o tribunal deu como quebrados os termos da suspensão da prisão preventiva e ordenou o seu confinamento.
O doente mental devia, então, ter sido internado no Hospital Júlio de Matos, mas com esta unidade de saúde lotada, o professor de música foi, em abril desse ano, preso na ala psiquiátrica do Hospital Prisional São João de Deus, em Caxias, até que pudesse ser transferido para uma clínica. Todavia, o que devia ser uma situação provisória alongou-se no tempo.
O Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de um habeas corpus interposto pelo irmão do doente mental, considerou que Rui M. devia ser transferido com urgência para uma unidade de saúde fora do sistema prisional, mas julgou improcedente a ação e o doente mental continuou na cadeia.
Governo nega, mas não apresenta provas
Em junho, foi apresentada queixa no TEDH, que alegava que o esquizofrénico, por estar numa cadeia, não estava a receber o tratamento médico adequado e que a medicação em excesso teria efeitos a longo prazo na sua saúde. Na queixa, garantia-se, ainda, que as condições de detenção agravaram a doença.
Na resposta aos juízes europeus, o Estado português negou a acusação, assegurando que Rui M. estava a ser tratado mediante um plano médico elaborado por uma equipa multidisciplinar. Portugal afirmou, igualmente, que a medicação ministrada era a correta e que o professor de música realizava atividades na prisão e mantinha contactos com o irmão. Não tinha, por estes motivos, sido sujeito a tratamento desumano e degradante.
O TEDH não concordou. “O Governo não apresentou qualquer prova de um plano de tratamento individual para o [doente] e não conseguiu refutar as suas alegações constantes no que respeita ao nível de cuidados recebidos. A natureza da sua condição tornou-o mais vulnerável do que a média dos detidos e a sua detenção pode ter exacerbado, em certa medida, os seus sentimentos de aflição, angústia e medo. O facto de as autoridades não lhe terem prestado a assistência e os cuidados adequados expuseram-no desnecessariamente a um risco para a sua saúde e deve ter provocado stresse e ansiedade”, constataram os magistrados europeus.
Internamento temporário alongou-se
O TEDH destacou, de igual modo, que o Hospital Prisional de Caxias “destinava-se ao internamento temporário de reclusos com problemas de saúde mental e não para cuidados permanentes”, evidenciando que “a manutenção de detidos com doenças mentais na ala psiquiátrica das prisões comuns enquanto aguardam a sua colocação num estabelecimento de saúde mental, sem a prestação de cuidados suficientes e adequados, não é compatível com a proteção garantida pela Convenção Europeia a essas pessoas”.
“Os cuidados, para além dos básicos, e o ambiente não eram adequados à situação do [doente mental]. A sua detenção num estabelecimento prisional deve ter agravado o seu estado de confusão e de medo”, lê-se no acórdão, que determina o pagamento, pelo Estado, de uma indemnização de 34 mil euros a Rui M.
Problema antigo atinge 200 doentes mentais
Os juízes europeus lembram que este não é um problema novo em Portugal, tanto mais que, salientam, “relatórios relevantes do Comité para a Tortura e das Nações Unidas destacaram as questões relacionadas com a saúde mental como um dos principais desafios com que se confronta o sistema prisional em Portugal”. “O Comité para a Tortura, em particular, afirmou que estes doentes não dispunham de 'um ambiente terapêutico adequado'", destacam.
Uma análise que contribuiu para que, agora, o TEDH considerasse “que as infrações constatadas no presente processo não eram imputáveis apenas às circunstâncias pessoais do [doente mental], mas resultam de um problema estrutural”. “O Tribunal registou as recentes alterações introduzidas na legislação portuguesa, que considerou positivas, mas declarou que a aplicação dessas disposições continua a ser necessária. O Estado tem de garantir urgentemente condições de vida adequadas e apropriadas e um tratamento adequado e individualizado aos doentes mentais que necessitam de cuidados especiais devido ao seu estado de saúde, a fim de apoiar o seu eventual regresso e integração na comunidade”, refere o acórdão.
Ao JN, o advogado de Rui M. subscreve as críticas europeias. “Não há investimento na saúde mental em Portugal, mas o dinheiro sobra para bancos e submarinos”, declara Vítor Carreto. O causídico sublinha ainda que “há cerca de 200 pessoas que deviam estar em clínicas e permanecem em prisões”, nas quais “as más condições se mantêm”.