Estudo que revela "lacunas" nos inquéritos a vítimas de violência doméstica premiado pela APAV
Investigadora da Universidade do Porto concluiu que as perguntas que integram as "Fichas de Avaliação de Risco" utilizadas em casos de violência doméstica não são adequadas ao registo oral e que há problemas linguísticos que afetam a sua eficácia. Trabalho de investigação valeu a Ana Ferreira um prémio da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), entregue este mês.
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Falta de clareza, construções na negativa e "perguntas multifacetadas". São estas algumas conclusões da tese de mestrado de Ana Ferreira, que se propôs a analisar linguisticamente as questões que constam nas "Fichas de Avaliação de Risco" com as quais as vítimas são confrontadas após uma denúncia de violência doméstica.
A tese, que pretende ser "contributo ainda que modesto" para a problemática, teve como principal objeto de estudo um modelo predefinido com 20 perguntas de resposta fechada, colocadas oralmente às vítimas, e cujo objetivo é determinar o nível de risco e, consequentemente, algumas medidas para proteção da vítima.
Na dissertação, a investigadora começa por notar que, por se tratar de formulários que exigem das vítimas respostas fechadas, "estas não têm a "possibilidade de contar aberta e detalhadamente a sua história".
"As vítimas não deveriam ter de ver as suas respostas restringidas a perguntas fechadas, de tipo binário (não obstante, a necessidade de os agentes disporem de um método rápido de avaliação do nível de risco da vítima) ", preconiza a autora na dissertação de mestrado em Linguística, que apresentou em novembro de 2019 na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP). Com este trabalho, Ana Ferreira foi este mês de dezembro premiada com o Prémio APAV para a Investigação 2020.
Na exposição escrita, a estudante adverte que as perguntas que constam nos inquéritos policiais são "estruturalmente complexas", tanto para a vítima como para o agente policial, desde logo porque muitas delas incluem perguntas alternativas.
Sob este ponto, a autora afirma que "a multiplicidade de questões não permite a exatidão de resposta por parte da vítima", já condicionada pelas respostas fechadas "sim" e "não", constituindo, por isso, "um desafio para as vítimas".
Veja-se o caso da pergunta 5 do referido inquérito que se socorre do uso das conjunções copulativa e disjuntiva: "Foi necessária atenção médica após alguma agressão e/ou as lesões comprometeram as atividades diárias da vítima ou as de outros familiares?".
Para Ana Ferreira, também o uso de interrogativas na negativa dificulta e condiciona o tipo de resposta da vítima, como acontece na pergunta 11: "O/A ofensor/a revela instabilidade emocional/psicológica e não está a ser acompanhado/a por profissional de saúde ou não toma a medicação que lhe tenha sido receitada?".
"Tendo em conta que as vítimas estão emocionalmente fragilizadas, o que afeta a sua capacidade de processamento cognitivo, esta estrutura sintática é obscura e de difícil compreensão", assevera a investigadora da FLUP.
Além de detetar irregularidades na coesão temporal de algumas perguntas ("A vítima separou-se do/a ofensor/a, tentou/ manifestou intenção de o fazer (nos últimos/ próximos 6 meses)?"), também a coesão lexical falha em algumas questões, onde se apresentam, por exemplo, como sinónimos "agregado doméstico" e "agregado familiar".
A investigadora indica ainda que há termos, como é o caso de "armas", "ameaças" ou "lesões", que podem ter mais do que uma interpretação bem como perguntas que podem exercer "um efeito benéfico sobre o agressor". E exemplifica com as questões 13 e 16, respetivamente: "O/A ofensor/a tem problemas relacionados com o consumo de álcool, ou outras drogas (...), dificultando uma vida diária normal (no último ano)?" ou "O/A ofensor/a tem problemas financeiros significativos ou dificuldade em manter um emprego (no último ano)?".
"De forma não intencional, as respostas afirmativas das vítimas a estas perguntas podem ser usadas em defesa do acusado, como atenuantes e, assim, suavizar a sua responsabilidade", afirma.
Além de alertar para a ordem das perguntas, que diz não seguir um fio condutor lógico, Ana Ferreira considera que este tipo de lacunas podem "exercer um impacto altamente negativo no apuramento dos factos", colocando em causa a "determinação rigorosa da ocorrência reportada policialmente".