Ex-diretor de Fronteiras do SEF julgado por ter protegido inspetores que mataram Ihor Homeniuk
O Tribunal Central de Instrução Criminal mandou, esta sexta-feira, para julgamento o diretor de Fronteiras de Lisboa à data da morte no aeroporto de Lisboa, sob custódia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, em março de 2020.
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António Sérgio Henriques, de 59 anos, está acusado pelo Ministério Público de um crime de denegação de justiça e prevaricação, por, após o óbito, ter alegadamente omitido à então diretora do SEF, Cristina Gatões, que a vítima tinha ficado deitada e algemada com as mãos atrás das costas durante oito horas, sem vigilância na sala dos médicos do Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT) do aeroporto de Lisboa.
Foi durante este período que Ihor Homeniuk, de 40 anos, asfixiou lentamente até à morte, depois de ter sido espancado e abandonado por três outros inspetores do SEF, já a cumprir uma pena de nove anos de prisão, por ofensa à integridade física qualificada, agravada pelo resultado de morte. O objetivo do arguido seria, segundo a acusação do Ministério Público, impedir que estes últimos, apesar de saber que tinham usado "força física", fossem alvo de um "procedimento de natureza disciplinar".
O óbito, a 12 de março de 2020 e inicialmente atribuído a uma "crise convulsiva", foi declarado no local por um médico do INEM e o ex-diretor de Fronteiras de Lisboa nega ter protegido, nessa mesma noite, os três funcionários entretanto condenados.
Esta sexta-feira, a juíza Carina Realista Santos considerou, porém, que da prova que consta do processo resulta "manifestamente indiciado" que António Sérgio Henriques sabia o que sucedera a Ihor Homeniuk, tendo omitido esses factos do relatório do EECIT sobre o incidente, para não comprometer os três inspetores.
Viu "marcas no rosto"
Em causa está um documento que competia aos vigilantes do EECIT elaborar, mas em cuja redação o antigo diretor de Fronteiras de Lisboa também participou, na noite de 12 de março de 2020. Nesse dia, recordou a magistrada na leitura da decisão instrutória, António Sérgio Henriques já tinha sido informado, de manhã, que estava instalado no centro "um passageiro ucraniano" que estava "muito agitado" e que até teria agredido os seguranças "com um sofá".
Um relato, acrescentou, que levou o então dirigente do SEF no aeroporto de Lisboa a contactar a unidade de apoio, que acionou três inspetores - e não dois, como seria habitual - para averiguar a situação. "Era do seu conhecimento que tinham ido três inspetores", frisou.
Já pelas 18.30 horas, António Sérgio Henriques foi informado do óbito de "um passageiro", "sendo que não houve nenhum outro incidente com outro passageiro instalado" no EECIT. "O arguido António [Sérgio] Henriques, após chegar ao EECIT, deslocou-se à sala dos médicos e viu a cara do senhor Ihor Homeniuk, a qual evidenciava marcas no rosto", sublinhou.
Nessa altura, terá ainda sabido pelos seguranças, em particular uma vigilante que entretanto saiu do país e que terá assistido às agressões à vítima, os "termos da intervenção" dos três inspetores entretanto já condenados. Terá sido então que terá decidido omitir factos do relatório e, por conseguinte, da então diretora do SEF.
"E porquê? Com que intenção? Com a intenção de que nada de comprometedor para os inspetores que estavam sob a sua direção constasse do teor desse relatório", afirmou Carina Realista Santos, desvalorizando a explicação dada na instrução por António Sérgio Henriques de que apenas quisera corrigir erros ortográficos e gramaticais.
Mais quatro arguidos
Esta sexta-feira, a magistrada confirmou ainda a ida a julgamento dos outros quatro arguidos neste segundo processo sobre o caso. Dois deles são mais dois inspetores do SEF, acusados de homicídio negligente por omissão, por se terem conformado com a morte do cidadão ucraniano ao não terem comunicado aos seus superiores que este fora deixado algemado com as mãos atrás das costas nem diligenciado para que a restrição cessasse.
Os restantes são dois seguranças do EECIT à data dos factos, suspeitos de, horas antes do espancamento por parte dos três elementos do SEF já presos, terem manietado os pés e as mãos de Ihor Homeniuk com fita adesiva. Respondem ambos por exercício ilícito da atividade de segurança privada em "concurso aparente" com um de sequestro.
Um deles negou, também na instrução, tê-lo feito, mas, para a juíza, os testemunhos de outras pessoas recolhidos no inquérito e as imagens do videovigilância do EECIT - que não incluem o que aconteceu na sala dos médicos, onde não estavam instaladas câmaras - contradizem o seu testemunho.
Por ter sido validada sem alterações pelo Tribunal Central de Instrução Criminal, a decisão não é passível de recurso. Uma vez que nenhum dos crimes em causa é punível com pena superior a cinco anos de prisão, os cinco arguidos vão ser julgados num tribunal singular (com um só juiz) e não coletivo (com três, para crimes mais graves).
"À partida, agora o caminho está aberto para um julgamento que se quer que seja rápido", reagiu à saída do tribunal, no Campus de Justiça de Lisboa, o mandatário da família de Ihor Homeniuk, José Gaspar Schwalbach.