Ex-militar da Força Aérea acusado de praxes violentas diz que também comeu ração de cão

Roberto Silva, um dos arguidos, à saída do Tribunal de São João Novo
Foto: Amin Chaar / Arquivo
Um dos dez ex-militares da Força Aérea Portuguesa, que esta terça-feira começam a ser julgados por praxes violentas alegadamente cometidas sobre dois soldados, na Base Aérea de Monte Real, em Leiria, admitiu que também "comeu ração e bebeu, em posição canina, os líquidos existentes" nas gamelas e bebedouros dos cães.
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A confissão do arguido Roberto Silva, de 28 anos, consta num dos vários requerimentos da sua defesa, a que o JN teve acesso, em que aquele refere que tudo era "feito às claras e à frente de todos, como se [de] formação militar complementar se tratasse, por ordem superior e costume e uso profissional aceite por todos, até pelos recrutas".
O Ministério Público (MP) dá conta que os dez arguidos, então com a especialidade de Polícia Aérea, consideravam que os dois ofendidos, António G. e Alexander P., apresentavam um nível de desempenho "abaixo do padrão" e, como tal, deviam ser sujeitos a um "processo de integração/ensinamento".
"Assim, entre maio de 2018 e até setembro de 2019, por várias vezes e em dias distintos, foi ordenado pelos arguidos aos ofendidos que comessem ração e líquidos para canídeos na presença de outros militares", refere a acusação da procuradora Ema Afonso.
Por vezes, tinham também que apanhar com a boca a ração espalhada em cima do balcão do bar da Esquadra de Proteção e Segurança pelos arguidos. “Nestas ocasiões, também lhes era ordenado que rastejassem com o corpo na pista de obstáculos de canídeos”, garante o MP.
A investigação refere ainda que, no período noturno, “os arguidos, por várias vezes, ordenaram aos ofendidos que entrassem numa gaiola de transporte de cães, colocada numa viatura de serviço”, sendo transportados pela periferia da base, em terreno “sinuoso e acidentado”.
Os dez ex-militares, expulsos da instituição militar em 2020, também terão, ainda segundo a acusação, ordenado aos soldados que “ingerissem bebidas alcoólicas até que os mandassem parar” e privado as vítimas dos seus turnos de descanso, nas noites em que estas estavam de serviço à Porta de Armas.
Arma à cabeça, dormidas na casa de banho e sexo oral
Entre outros episódios, o Ministério Público refere que, algures durante o período dos factos, o arguido André Alves apontou a arma de serviço à cabeça de Alexander P., dizendo-lhe: “Quem iria sentir a sua falta se eu disparasse?”. E que, noutra ocasião, o arguido Miguel Sequera chamou este ofendido e perguntou-lhe se queria fazer “uma festinha, mamar”, ao mesmo tempo que segurava o pénis na mão, o que Alexander P. respondeu que não.
A acusação diz também que o ofendido António G. - que terá chegado a tentar o suicídio - chegou a dormir na casa de banho, "junto a uma sanita" e a ser algemado e fechado no interior do armário do quarto pelos arguidos.
Arranque em falso
O início do julgamento, que vai decorrer no Tribunal de São João Novo, no Porto, chegou a estar agendado para 5 de novembro, mas acabou por ser suspenso, após o advogado do arguido Roberto Silva ter anunciado que ia requerer o afastamento do coletivo que ia julgar o caso, composto por três juízas, uma delas militar, por se tratar de um processo envolvendo crimes militares.
Em causa estava o facto de estas magistradas terem indeferido um requerimento no qual Carlos Caneja Amorim pedia que se “decretasse o encerramento” do processo e a absolvição dos arguidos, alegando “nulidades insanáveis” da acusação do Ministério Público.
Mas o Tribunal da Relação do Porto, tal como o JN noticiou em dezembro, indeferiu o incidente de recusa, defendendo que não havia qualquer razão “para duvidar da imparcialidade ou independência das juízas visadas”.
Consideraram os juízes desembargadores Maria do Rosário Martins, Nuno Pires Salpico e Luís Coimbra, em acórdão de 4 de dezembro, que não se encontrava, por muito que se procurasse, “qualquer atitude persecutória por parte do tribunal coletivo que demonstre preconceitos relativamente ao requerente” nem se antevia “qualquer má vontade, muito menos pré-juízos ou falta de imparcialidade nos despachos proferidos”.
A Relação do Porto rejeitou ainda o argumento de que “a pressão mediática” a que as juízas estão sujeitas condicionaria “a sua imparcialidade”. “Os juízes estão preparados para suportar tal pressão; e se esta circunstância fosse impedimento destas juízas, também a seria de quaisquer outros juízes do mesmo tribunal (quiçá de todos os tribunais do nosso país)”, concluíram.

