O número de pessoas a entrar em programa de metadona aumentou na pandemia, devido à falta de dinheiro e à escassez de substâncias ilícitas no mercado.
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A crise também chegou aos toxicodependentes. Só em Lisboa, o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) estima que cerca de 300 pessoas iniciaram a toma do medicamento substituto de heroína. Os centros de Respostas Integradas (CRI), equipas e organizações tentaram agilizar os procedimentos para dar resposta rápida.
Segundo o presidente do SICAD, o aumento da procura "tem sido reportado pelas organizações que trabalham na redução de danos e que sentiram maior pressão para admissão de novos doentes". João Goulão explica que "houve uma redução em todas as vias de introdução de drogas no mercado, pelo que houve escassez das drogas clássicas".
O aumento foi sentido, por exemplo, em Ovar, onde o Centro Comunitário de Esmoriz teve novos utentes a entrar no programa de metadona. "Estivemos em cerca sanitária, a droga não entrava e quando não havia heroína, os utentes procuravam metadona", relata o psicólogo Nuno Rechena, que diz que, num mês e meio, houve seis a sete novos pedidos para metadona, "o que não acontece num mês normal". "Embora as consultas estivessem paradas, nunca deixamos de acompanhar os utentes". A crise, defende, também está a afetar os consumidores de drogas. "Não tivemos só pedidos para metadona, mas também um nível que nunca antes tivemos de pedidos de ajuda alimentar. Os nossos utentes ganham dinheiro a pedir moedinha e não só deixou de haver para a droga, como para comerem."
CAT em serviços mínimos
Em Lisboa, no Grupo de Ativistas em Tratamentos (GAT), João Santa Maria, coordenador do projeto "In Mouraria", subscreve o fenómeno. "Sei que houve um acréscimo grande para metadona, porque havia dificuldade em conseguirem dinheiro para substâncias", relata, acrescentando que houve mais recurso a benzodiazepinas por serem mais baratas. Os centros de atendimento a toxicodependentes (CAT), explica, "estiveram em serviços mínimos" e foram forçados a reinventar-se para dar resposta.
O aumento da procura pelo medicamento, acredita Emídio Abrantes, está ligado à alteração de consumos. "Se até agora predominava a cocaína, em linha com as vidas frenéticas e agitadas, com a pandemia regressou a heroína que proporciona uma aparente tranquilidade", refere o responsável da Associação Portuguesa de Adictologia, que alerta que "as estruturas de distribuição de metadona não podem nunca fechar". "Se os doentes deixam de tomar metadona, todo o sistema fica afetado, familiares, amigos, colegas de trabalho, comunidade", conclui.
Estava sem abrigo, sem produto e sem comida
Num parque de estacionamento no centro de Ovar que, por estes dias, já se enche de carros, está José (nome fictício). Voltou a ter a moedinha que perdeu no confinamento e está apressado para não perder trabalho, de boné escuro, máscara com padrão de tropa e com a fiel cadela. A Carrinha Dá a Volta, do Centro Comunitário de Esmoriz, estaciona para lhe deixar comida e a metadona que começou a tomar na pandemia por não haver droga na rua. Em 60 quilómetros de estrada pelo concelho, a carrinha cruza histórias de dependência que a covid-19 não veio aliviar. José é a personificação do desespero: "Vi-me atrapalhado. Estava sem abrigo, sem produto e sem comida. Arrumava carros e fiquei sem nada".
Tem 38 anos, chegou a estar em programa de metadona. Mas desistiu. "Agora consumia metadona de rua e cocaína. Mas aqui em Ovar [devido à cerca sanitária], não havia nada", relata. "Havia falta de produto e eu também não tinha dinheiro para comprar. Foi muito duro. E estava sem comida". Engoliu o orgulho e pediu ajuda ao Centro Comunitário de Esmoriz. "Pedi para entrar no programa de metadona e ajuda para comer. Foi a necessidade."
O psicólogo Nuno Rechena, que dá o "giro" com a carrinha, estendeu-lhe a mão. "Estávamos em pleno confinamento, mas conseguimos insistir com as equipas de tratamento para o aceitarem", conta. José recebe a metadona três vezes por semana e quer manter. "Ando equilibrado. Agora prefiro juntar dinheiro para comer."
Na pandemia, a carrinha reduziu as vezes que saiu à rua e teve de esperar por material de proteção do SICAD. Mas não deixou de ajudar. Pedro (nome fictício), desde os 16 anos, já consumiu "todo o tipo de drogas". Tem 47 e tinha começado a trabalhar no início do ano. Perdeu o emprego: "Não tenho direito a subsídios. Estou numa situação difícil". Injetava metadona líquida e no confinamento pediu metadona em comprimido. "Trouxeram-me sempre. Também fumo canábis e foi difícil arranjar. Inflacionou 500% o preço."
"Escravo" durante 15 anos
Ao fim de três horas de viagem, a carrinha para no Furadouro, junto a Francisco, 58 anos, e os dois cães, Manzarra e Stallone. "Vivi isto com muito medo. Cheguei a fazer o teste porque estava com sintomas." Deu negativo. Vive no antigo armazém de pesca do pai e está há 20 anos no programa de metadona, depois ter sido "escravo da heroína durante 15". Na pandemia, passou fome: "Não entro em casa da minha irmã desde que isto começou. A carrinha é que me ajudou".
Como ele, Osvaldo, 43 anos, consumidor de cocaína, precisou de alimentos pela primeira vez: "Fiquei sem trabalho e sem dinheiro". E Nuno, que entrou numa "espiral depressiva", aguarda para entrar numa comunidade terapêutica. "A coisa mais negativa foi não ter consultas presenciais. Por telefone fica sempre algo por dizer."
Perguntas e Respostas
O que é a metadona?
É um medicamento opioide que, administrado regularmente e na dose certa, suprime o sofrimento físico provocado pela falta de heroína.
O que são os programas de substituição?
É o tratamento de primeira linha destinado a quem tem consumos de opioides. Destina-se a promover a redução do consumo de heroína, sem exigência imediata da abstinência, e a fomentar os contactos do consumidor com profissionais para uma possível futura abstinência, com intervenção a nível psicológico e social.
Quem tem acesso?
Qualquer pessoa pode pedir para entrar no programa, mas tem de cumprir requisitos como o teste positivo para heroína numa análise à urina.
Como funciona?
A metadona é distribuída gratuitamente por técnicos, na dose e periodicidade fixada por prescrição médica. Sendo a toxicodependência uma doença crónica, a toma pode estender-se por toda a vida.
Ao tomar metadona, estaremos a substituir uma dependência por outra?
Os efeitos deste medicamento são diferentes dos da heroína ou outras substâncias similares e a sua utilização, em condições controladas, é segura. A metadona tem um efeito gradual e produz níveis estáveis de opioides no cérebro, o que reduz o desejo de consumir heroína, ajudando a estabilizar os consumidores.