Fugiu de casa três vezes e fez duas queixas, mas não sobreviveu a ciúmes doentios do marido
Equipa que analisa homicídios em contexto de violência doméstica critica inoperância do Ministério Público, GNR e médicos do SNS. Mulher foi assassinada à facada em Sever do Vouga em 2018.
Corpo do artigo
Entre junho de 2016 e dezembro de 2017, Marília Costa foi ameaçada de morte, agredida e viu o marido, Hélio Almeida, 69 anos, disparar dois tiros na sua direção, em Silva Escura, Sever do Vouga. Apresentou duas queixas na GNR, fugiu de casa três vezes e foi diagnosticada com uma perturbação depressiva pelo médico de família. Contudo, nada foi feito pelas diferentes entidades e a mulher, de 66 anos, seria assassinada à facada, em janeiro de 2018, pelo companheiro, a quem, um ano antes, foi diagnosticada uma perturbação delirante de ciúme e síndrome depressivo. Devido a esta doença, Hélio Almeida foi considerado inimputável no final do julgamento realizado em fevereiro de 2019.
Esta quarta-feira, a Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD) efetuou várias críticas às autoridades que contactaram com o caso. "O Ministério Público não acionou a intervenção dos serviços e entidades que pudessem proporcionar o suporte e o acompanhamento, que tivesse em vista procurar evitar o prolongamento e a agudização do conflito", lê-se no último relatório publicado.
Composta por magistrados e representantes do Governo e das forças de segurança, a EARHVD concluiu também que os procedimentos de avaliação do risco foram aplicados, pela GNR, "de forma pouco criteriosa e informada, com resultados contraditórios, nalguns casos inverosímeis e incompletos". Esta lacuna "não permitiu uma correta gestão do risco" e que "as medidas de vigilância e de segurança neles consignadas nem sempre se mostraram adequadas ao risco e aos fatores identificados". Aliás, destaca o relatório, não existe sequer evidência que alguma medida de segurança da vítima tenha sido efetivamente executada.
Face a estas conclusões, a EARHVD recomenda que seja feito um balanço urgente "da aplicação do modelo de avaliação e gestão do grau de risco da vítima de violência doméstica", com vista à "sua atualização e aperfeiçoamento". Alerta ainda para "a necessidade de incrementar a qualificação de quem" é responsável pela avaliação do grau de risco de um caso de violência doméstica.
Homicida internado em hospital psiquiátrico
Marília e Hélio foram casados durante 46 anos e tiveram oito filhos. A maioria nasceu em França, onde o casal esteve emigrado durante três décadas e meia. Já reformados, ambos regressaram a Sever do Vouga, mas a vida nunca foi tranquila em Portugal.
Movido por "ciúmes delirantes", Hélio teimava que a mulher o traía e via na "disposição das pedras e paus nos caminhos e as três luzes acesas dos edifícios" sinais enviados por Marília aos "amantes". Em 2017, seria diagnosticado com perturbação delirante de ciúme e síndrome depressiva e a dose de ansiolíticos que tomava há sete anos foi reforçada.
Mesmo medicado, o reformado não deu descanso à esposa, que, em setembro de 2017, fugiu para a casa de uma filha, em França. Voltou a Sever do Vouga quando o marido aceitou receber acompanhamento psiquiátrico, mas pouco depois teve de voltar a refugiar-se na residência de outra filha, desta vez em Lisboa. Após novo perdão, a sexagenária abandonou, em janeiro de 2018 e pela terceira vez, o lar para encontrar paz na habitação de uma terceira filha, que também vivia em Silva Escura. Três dias depois, foi assassinada à facada quando estava no curral a alimentar os animais que criava com o marido. Este ainda tentou suicidar-se com comprimidos, mas sobreviveu.
Durante este período, Marília Costa apresentou duas queixas na GNR, mas quando chamada a depor remeteu-se sempre ao silêncio. Uma das filhas fez o mesmo.
No julgamento realizado no Tribunal de Aveiro, Hélio Almeida foi considerado inimputável, por padecer de uma doença psiquiátrica delirante. Está, desde então, internado num hospital psiquiátrico, de onde só sairá quando os médicos o considerarem curado.