Gravação à socapa trama polícia que ameaçou matar a mulher: "Escroto, nojo, rameira"
Primeiro injuriou-a, dizendo que era um "escroto", "podre", "um nojo". Depois, ameaçou-a, avisando que não ia "morrer à primeira", teria convulsões quando ele a estivesse a "rasgar" da "c*** ao pescoço". "Sua p***, sua rameira", afirmou, enquanto prometia que lhe arrancava o coração. "Pior", ia fazê-la "desaparecer".
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O homem, agente da PSP, disse tudo isto através de uma videochamada, feita no dia 19 de fevereiro de 2024, sem se aperceber de que a interlocutora, sua ex-companheira, estava a gravá-la. Agora, o polícia é suspeito de violência doméstica, num processo em que aquela mesma gravação, apesar de ter sido feita sem consentimento, poderá ser usada como prova, segundo acaba de decidir o Tribunal da Relação de Lisboa. Numa decisão recente, os juízes desembargadores do TRL deram razão ao Ministério Público e à juíza de instrução criminal do Tribunal de Almada que, em março, já tinha considerado que a gravação era um "meio legítimo de prova", que estava justificada "no âmbito da existência de um estado de necessidade".
A juíza de instrução defende que o arguido controlava e manipulava a vítima - uma mulher "submissa", que falava "baixo" e pedia desculpa, mesmo quando não tinha de o fazer - e chamou-lhe "narcisista, egocêntrico e dominador". Na escolha das medidas de coação, pô-lo em prisão domiciliária, com vigilância eletrónica, e proibiu-o de fazer contactos com as testemunhas e com a ofendida (exceto em situações relacionadas com as duas filhas menores de ambos).
Direito à palavra
Inconformada, a defesa recorreu daquela medida de coação, argumentando que o arguido não consentira na gravação das suas conversas com a ofendida e que, por isso, a prova obtida contra si era "nula, não podendo ser valorada nem utilizada". Em causa, sustentou, estava a "flagrante violação do direito à privacidade, nomeadamente do direito à palavra". Em alternativa, pedia uma medida de coação não privativa da liberdade, como a obrigação de apresentações semanais num posto da GNR.
Mas os juízes desembargadores da Relação Luísa Alvoeiro, Alda Casimiro e Rui Coelho decidiram que a gravação, "ainda que não consentida, constituiu o único meio que a ofendida teve ao seu dispor para desmascarar o recorrente, demonstrar a verdadeira personalidade deste e a veracidade da versão dos factos por si apresentada".
Os juízes frisaram que a vítima "não possui outros elementos probatórios, além das suas declarações, contrariadas pelas do agressor e pela sua postura pública, o qual é agente da PSP". De resto, consideraram que a prisão domiciliária era uma medida "necessária, adequada e proporcional".
Juízes seguem tendência recente
O Código Penal diz que comete crime de gravações e fotografias ilícitas quem, sem consentimento, "gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas", ou "utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas". Mas, neste processo, os juízes concluíram que a ofendida se socorreu de um meio necessário para fazer face a um perigo atual e iminente. Numa época em que se usam telemóveis para filmar e fotografar com uma facilidade nunca vista, os juízes seguiram a tendência da jurisprudência recente, que faz o direito à palavra ou à imagem ceder perante a necessidade de fazer prova dos crimes.
Pormenores
Cadastrado
O arguido já tem antecedentes "de ordem profissional" relacionados com crimes contra a integridade física.
80% da casa
O polícia chegou a ameaçar a vítima para que assinasse a venda da casa em comum. Deixou claro que "20% era para si e 80% para ele, porque a própria é que tinha saído de casa".
Soletra matrícula
No primeiro interrogatório de detido, o arguido chegou a soletrar a matrícula do carro de um homem com quem a vítima se estava a relacionar.