O Relatório Anual de Segurança Interna de 2020 revela que, nas investigações bem-sucedidas dos crimes de corrupção, houve seis vezes mais suspensões provisórias de processo do que acusações.
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Foram 259 os casos em que o Ministério Público (MP) abdicou de acusar e levar a julgamento os autores dos crimes, a troco do pagamento de uma quantia pecuniária ou de outro tipo de injunções, contra 43 casos em que deduziu acusação. Mas há quem acredite - não se conhecem estudos sobre a questão - que muitas das suspensões não resultam de uma atitude de complacência dos magistrados para com os corruptos, mas de uma estratégia para levar alguns criminosos a colaborar com a Justiça e conseguir condenar os casos mais graves.
Esta estratégia implica suspender o processo ao arguido contra o qual se reuniu prova da prática do crime de corrupção ativa (aquele que suborna o funcionário público para conseguir uma licença, por exemplo), mediante a condição (ou injunção, no jargão jurídico) de o mesmo depor no julgamento do autor da corrupção passiva (aquele que foi subornado para passar a licença).
Na qualidade de arguido, o corruptor ativo teria o direito de se remeter ao silêncio, mas, já como testemunha, fica obrigado a falar e a dizer a verdade em julgamento. Se mentir, pode ver a suspensão do processo ser revogada, caso ainda não tenham passado dois anos (o prazo máximo da suspensão) e recupera o estatuto de arguido, para ser acusado da corrupção. Se já tiverem passado os dois anos, o MP pode desencadear um inquérito-crime por falsas declarações.
Prioridade: funcionários
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O advogado Jacob Simões, especializado em direito penal, explica que aquela estratégia do MP assenta num pressuposto essencial, que leva a que as penas dos crimes de corrupção passiva, para ato lítico ou ilícito, sejam mais pesadas do que as dos crimes de corrupção ativa: "O Estado entende que a corrupção passiva é um problema maior para a democracia do que a corrupção ativa", afirma aquele ex-presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Advogados, que já teve dois clientes condenados por corrupção passiva em processos nos quais o MP do Departamento de Investigação e Ação Penal de Coimbra seguiu a referida estratégia.
Jacob Simões acredita, aliás, que uma boa parte das suspensões provisórias, nos crimes de corrupção, deriva daquela estratégia do MP. "Quanto ao mais, só se for por coisas de lana-caprina", declara, ao JN, referindo-se a situações de corrupção ativa menos graves, como aquelas onde o empresário tem dificuldades artificiais, numa qualquer Câmara Municipal, e conclui que tem de pagar "luvas" ao funcionário para obter a licença a que tem direito.
Vantagem se colaborar
Para medir a adesão do MP à estratégia de suspender processos a corruptores para condenar corruptos, conviria analisar, ao menos, os 259 processos com suspensão provisória. Mas, no Relatório de Segurança Interna, outro dado indicia que as suspensões podem estar a ser usadas para atacar este crime que vive de pactos de silêncios e onde a prova testemunhal é, muitas vezes, o único meio de fazer justiça. Em 20 tipos de crimes económico-financeiros, só outros quatro tiveram mais suspensões do que acusações, e sempre por diferenças muito menores do que no de corrupção (ver ficha).
Todavia, no seio do próprio MP, há quem desconfie da motivação por detrás de tantas suspensões provisórias. Um procurador-geral adjunto, que pediu anonimato, manifestou receio de que elas derivem, sobretudo, de uma "atitude mole" dos procuradores titulares dos inquéritos perante a corrupção.
Instado a comentar os números, o novo presidente do Sindicato dos Magistrados do MP, Adão Carvalho, começou por justificar que a Lei prevê a suspensão provisória na corrupção, "desde que o arguido não tenha antecedentes criminais e o grau de ilicitude do crime não seja muito grave". "Nem sempre o julgamento é a melhor solução", comentou, admitindo também que a suspensão também é usada como prémio para quem colabora com a Justiça. "Porque, muitas vezes, o corruptor, se não tiver a vantagem, não colabora", justifica.
Pormenores
Tráfico de influência
Não houve nenhuma acusação, nem nenhuma suspensão provisória de processo, pelo crime de tráfico de influência, em 2020. Foram iniciados 27 inquéritos e arquivados 21.
Outros quatro com menos acusações
Em 2020, houve outros quatro crimes económico-financeiros, além do de corrupção, com mais suspensões provisórias de processo do que acusações: fraude contra a segurança social (dez acusações contra 13 suspensões); desvio na obtenção de subsídio (um contra dez); fraude na obtenção de subsídio (nove contra dez) e especulação (36 contra 77).
Os recordistas das suspensões
Dois tipos de crimes geraram suspensões provisórias de processo em maior número do que o de corrupção (259), mas tiveram ainda mais acusações. Um deles foi o de abuso de confiança fiscal, com 272 suspensões e 630 acusações. O outro foi o de burla (exceto burlas tributárias), totalizou 295 suspensões e 1499 acusações.
Crimes que não fugiram da norma
Em 15 dos 20 crimes económico-financeiros elencados, as acusações superaram as suspensões provisórias de processo. São os casos, por exemplo, do peculato (68-6), recebimento indevido de vantagem (5-2), fraude fiscal (196-60), branqueamento de capitais (21-0), abuso de poder (14-4), abuso de confiança contra a segurança social (1018-429).