Um dos dois inspetores do extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) acusados de homicídio por negligência por omissão pela morte, em 2020, de Ihor Homeniuk no aeroporto de Lisboa negou, no início do segundo julgamento do caso, ter visto o cidadão ucraniano algemado na sala onde este acabaria por morrer.
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Ihor Homeniuk, de 40 anos, asfixiou lentamente até à morte a 12 de março de 2020, depois de ter sido espancado e deixado deitado algemado, durante oito horas, numa sala sem vigilância do Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT) do aeroporto de Lisboa por três inspetores do SEF condenados, em maio de 2021, a nove anos de prisão por terem matado, sem intenção, o imigrante.
Na altura, foram os únicos arguidos a sentar-se no banco dos réus, mas, no final do julgamento, o Tribunal Central Criminal de Lisboa mandou extrair uma certidão para que a atuação de outros inspetores e seguranças do EECIT que lidaram com o cidadão ucraniano fosse investigada. O inquérito culminou na acusação de cinco pessoas, que esta segunda-feira começaram a ser julgadas no Tribunal Local Criminal de Lisboa.
Entre estes, estão os inspetores, atualmente aposentados, Cecília Vieira e João Agostinho, suspeitos de homicídio por negligência por omissão, por, sabendo que Ihor Homeniuk fora algemado, nada terem feito para cessar a situação. A primeira optou por não prestar, para já, declarações, enquanto o segundo insistiu, apesar de ter escrito o contrário num relatório elaborado em março de 2020, que "nunca" viu o cidadão ucraniano algemado.
"Não havia gritos"
Confrontado com a contradição, esclareceu que, na altura, descreveu quer aquilo a que assistiu, quer o que lhe foi contado por colegas sobre o sucedido, admitindo que possa ter sido um dos inspetores condenados em 2021 a ter-lhe dito que a vítima fora algemada.
A 12 de março de 2020, precisou João Agostinho, de 64 anos, "espreitou", antes e depois de marcar férias num outro espaço do SEF, duas vezes para a sala onde se encontrava Ihor Homeniuk. Da primeira vez, já depois de a hierarquia ter solicitado via rádio a nomeação de três inspetores para lidarem com o passageiro, deu "com um cidadão deitado no colchão, com as pernas amarradas com fita adesiva normal" e "calmo". Mais tarde, viu os três colegas já presentes, "a tentar acalmar" o cidadão ucraniano, que "esbracejava".
"Não havia gritos, não havia nada de especial. Fiquei com a impressão de que iriam eventualmente algemá-lo. Não vi nada de mais, estava tudo calmo", sublinhou.
Mais à frente no depoimento, ressalvou, no entanto, que, até esse dia, "nunca" reparara em nenhum ocupante do EECIT com as pernas imobilizadas com fita adesiva. "Não referi que seria normal fazer esse tipo de imobilização. Nunca vi esse tipo de imobilização [até então]", clarificou, ao ser questionado especificamente sobre o uso de fita adesiva.
Outros arguidos em silêncio
A imobilização terá sido feita, segundo o Ministério Público, por dois dos seguranças de uma empresa privada então em funções no EECIT, igualmente arguidos no processo. Acusados dos crimes de sequestro e exercício ilegal de segurança privada, remeteram-se, na primeira sessão do julgamento, ao silêncio, tal como o, à data, diretor de Fronteiras de Lisboa.
António Sérgio Henriques, atualmente desempregado, responde por um crime de denegação justiça e prevaricação, por ter, alegadamente, alterado um relatório para tentar proteger os três inspetores posteriormente condenados pela morte do cidadão ucraniano - Duarte Laja, Luís Silva e Bruno Sousa - de um processo disciplinar.
O julgamento prossegue amanhã, 17 de setembro de 2024, com a audição das primeiras testemunhas arroladas pela acusação. Nas exposições introdutórias, os advogados dos arguidos afirmaram todos que irão tentar demonstrar a inocência dos seus clientes.
O óbito de Ihor Homeniuk foi declarado ao final da tarde de 12 de março de 2020, no próprio EECIT, dois dias depois de a sua entrada em Portugal, para trabalhar, ter sido recusada. À entrada, o mandatário da família da vítima, José Gaspar Schwalbach, lamentou que, quatro anos depois do sucedido, esta não tenha ainda podido, atendendo à duração dos processos judiciais, "terminar o luto".