Países sem compromissos de cooperação também podem repatriar ex-líder do BPP, que na quinta-feira terá acedido a blogue a partir do Belize.
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João Rendeiro, que terá fugido para o Belize, não está completamente livre de ser dali extraditado para Portugal, apesar de ambos os estados não terem celebrado entre si nenhum acordo com esse fim.
A verificar-se a detenção do antigo líder do Banco Privado Português (BPP) naquele ou noutro país estrangeiro sem acordo de extradição com Portugal, o repatriamento dependeria da decisão de um juiz local de uma instância superior.
Várias fontes judiciais explicaram ao JN que tudo depende da cooperação entre tribunais dos dois países e, também, de alguma diplomacia entres estados. Os acordos de extradição são "apenas" um instrumento para facilitar a tramitação deste tipo de processos.
Num primeiro tempo, a Polícia Judiciária (PJ), que já recebeu os mandados de detenção europeu e internacional, anteontem, ao final do dia, deve fazer chegar o pedido de paradeiro à Europol e à Interpol, para que façam uma ponte de contacto com as autoridades policiais do país sem acordo de extradição. Isto, depois de, num primeiro momento, a PJ ou as polícias internacionais localizarem o fugitivo e informarem o tribunal português que emitiu o mandado.
Aos juízes nacionais cabe depois entrar em contacto com as autoridades judiciais do país sem acordo de extradição e solicitar a detenção do fugitivo para ser encaminhado para Portugal.
Acesso a blogue no Belize
Segundo informações recolhidas pelo JN, ainda ontem foi feito um novo acesso ao blogue pessoal de João Rendeiro ("Arma/Crítica") a partir do Belize.
Se o gestor de fortunas for detido naquele país da costa leste da América Central ou noutro sem acordo de extradição com Portugal, a autoridade judiciária local deverá verificar se existem limitações para a extradição, com base na nacionalidade (o banqueiro só terá a portuguesa) e na reciprocidade, que consiste em verificar se a lei nacional não belisca a constituição local.
Ao mesmo tempo, se o Governo assim entender, a diplomacia portuguesa, através da rede de embaixadas, poderá exercer influência junta das autoridades políticas locais.
"As fronteiras são cada vez menos um limite absoluto. Se o crime se globalizou, o combate ao crime também, e existem cada vez menos santuários onde um fugitivo se possa esconder", comentou, ao JN, fonte judicial. Mas, em princípio, a última palavra, para entregar um foragido a Portugal, será sempre das autoridades judiciárias do país estrangeiro.
Via verde sobre impostos
Estes processos são, muitas vezes, morosos. Se em Portugal é possível interpor recursos, para evitar extradições, o mesmo sucede na generalidade dos países.
No caso do Belize, a existência de um acordo sobre troca de informações em matérias fiscais até poderá ajudar. Em 2010, Portugal e o Belize criaram uma espécie de "via verde" para cruzar informações quer bancárias quer fiscais sobre pessoas que sejam "objeto de controlo ou de investigação", diz o acordo, assinado em Londres, pelo então secretário de Estado Assuntos Fiscais, Sérgio Vasques, e por uma Alta Comissária do Belize, Kamela Palma.
Segundo o acordo, se Rendeiro tiver algum contencioso com o Fisco, as autoridades do Belize deverão colaborar com Portugal.
Perfil
O início da fortuna de Rendeiro é atribuído à venda, nos anos 90, de um fundo (Gestifundo) de investimentos em mercados de capitais que tinha criado em 1986. Tinha ali investido 25 mil euros e vendeu-o ao Totta - onde também ficaria a trabalhar, durante cinco anos - por 15 milhões. Foi só o início, mas ajuda a perceber uma certa aura de alquimista que se lhe pegaria, do gestor doutorado na Universidade de Sussex (Inglaterra) que transmutava milhares em milhões. É essa, de resto, a imagem que haveria de imprimir no banco que criou, em 1996, a partir da comprada Incofina ao BCP, com um grupo de investidores em que se destacavam Pinto Balsemão, a família Vaz Guedes e Joe Berardo. Só os ricos eram clientes - um milhão de euros chegou a ser o investimento mínimo para o serem - e Rendeiro mostrou-se capaz de os tornar ainda mais ricos. Até 2008. A crise financeira que rebentou por esta altura demonstrou, lá fora e no BPP, que este banco tinha muitos esqueletos no armários, obrigando Rendeiro a pedir ajuda ao Estado. Mas foi de pouca dura, este estado de alma. Em 2009, já o ex-banqueiro se exibia nos escaparates, com o "Testemunho de um banqueiro", livro prefaciado pelo socialista João Cravinho e onde o autor, criador de uma coleção de arte contemporânea que se encontra nas mãos da justiça, já se autorizava a dar conselhos de boa gestão. Como vem fazendo, desde então, em "Arma/Crítica", o seu blogue.
Os três casos
O ex-presidente do Banco Privado Português já foi condenado em três processos, mas apenas o mais antigo transitou em julgado. Segundo o Conselho Superior da Magistratura, nunca houve indícios do perigo de fuga do gestor de fortunas
1. Prisão efetiva por manipular contas do BPP A primeira vez que João Rendeiro foi condenado pelo Tribunal de Lisboa aconteceu em outubro de 2018, numa pena de prisão cinco anos, mas suspensa na sua execução, e ao pagamento de 400 mil euros a uma associação. O ex-líder do BPP não assistiu à leitura de acórdão, que puniu a adulteração de contabilidade do banco de investimento, entre os anos 2001 e 2008. Também foram condenados os ex-administradores Paulo Guichard, que já estava no Brasil, e Salvador Fezas Vital, assim como os antigos quadros Fernando Lima e Paulo Lopes. Aquela condenação surgiu quatro anos após a acusação e suscitou vários recursos. Na Relação, os juízes agravaram a pena de Rendeiro para cinco anos e oito meses, tornando a prisão efetiva. O caso seguiu até ao Supremo, que não baixou as penas aplicadas pela Relação de Lisboa. Depois disso, Rendeiro apresentou ainda duas reclamações ao Tribunal Constitucional, que, após a sua análise, frustrou as pretensões do arguido. Em 16 de setembro de 2021, foi finalmente certificado o trânsito em julgado da condenação de Rendeiro, mas o processo ainda não baixou ao tribunal de primeira instância, ao qual compete emitir os mandados para cumprimento da pena de cinco anos e oito meses.
2. Mais dez anos, por desvio de 31 milhões Após uma nova acusação, em janeiro de 2016, o Tribunal de Lisboa condenou João Rendeiro, em maio de 2021, a mais dez anos de cadeia. Outros três ex-administradores do BPP também foram condenados, por terem desviado do banco, entre 2003 e 2008, mais de 31 milhões de euros. Foram interpostos recursos para a Relação, onde o processo ainda se encontra. Rendeiro estava neste processo, como nos outros, com mero termo de identidade e residência (TIR). Porque a juíza titular, citada ontem pelo Conselho Superior da Magistratura, entendeu que "nenhum facto foi trazido ao processo que fizesse crer que [o arguido] não se sujeitaria às consequências que decorrem da sua posição processual", ou que "pretendesse furtar-se ao cumprimento da pena de prisão em que foi condenado". Neste verão, Rendeiro viajou para a Costa Rica e deu disso conhecimento ao tribunal, onde estariam juízes de turno, devido às férias judiciais. Quando a juíza titular do processo regressou e deu conta de que o arguido também informara que iria viajar para o Reino Unido, dando a morada da embaixada local, convocou-o para o dia de hoje, 1 de outubro, com vista à revisão das medidas de coação. Tarde de mais. Sendo já inútil agravar as medidas de coação, a mesma juíza emitiu os mandados de detenção.
3. Burla a embaixador também vale cadeia Na última terça-feira, o Tribunal de Lisboa condenou o ex-presidente do BPP a uma pena de prisão efetiva de três anos e meio, por ter burlado um embaixador que, em 2008, investira, ao engano, 250 mil euros em obrigações de caixa subordinadas. Paulo Guichard e Salvador Fezas Vital, outros ex-gestores, também foram condenados. Foi no mesmo dia que se soube que Rendeiro tinha fugido de Inglaterra para um país sem acordo de extradição.