Juízes desvalorizaram relatos da vítima que foram alvo de perícia e anularam pena de oito anos e meio de cadeia do Tribunal de Setúbal.
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O Tribunal da Relação de Évora absolveu um homem de 58 anos que tinha sido condenado a oito anos e meio de prisão por agredir e violar, por duas vezes, a filha, desde os 12 anos, em casa. Os juízes da Relação desvalorizaram o depoimento da vítima, validado por perícia psicológica do Instituto de Medicina Legal durante a investigação e por um perito médico em julgamento, além de exames efetuados. Por considerarem estas as únicas evidências existentes, os desembargadores João Gomes de Sousa e Nuno Garcia decidiram anular os factos relativos aos crimes de violência doméstica e violação agravada, por "clara ausência de provas" e "erro notório na apreciação da prova".
Os juízes de Setúbal tinham dado como provado, em abril do ano passado, que o homem violou a filha em duas ocasiões, em outubro e dezembro de 2012, na residência onde ambos viviam sozinhos, e que a violência doméstica aconteceu desde que a mãe da menina saiu de casa, em 2009.
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Médicos atestam agressão
Os crimes de violência doméstica diziam respeito a agressões do pai à menor - chapadas, pontapés e empurrões contra a parede - e insultos. Aos 15 anos, a menor chegou a ser assistida no hospital, onde foram detetadas e registadas num relatório três lesões em cada uma das faces internas das pernas, resultantes, segundo os médicos, de pontapés. Foi este episódio que fez o caso chegar à Justiça. Os juízes desembargadores, no acórdão datado de janeiro deste ano, ironizaram até, referindo que o arguido teve "sorte" por "não lhe ter sido imputado, em 10-11-2015, um crime de abuso sexual, pois que as lesões nas faces internas dos membros inferiores muito mais compatíveis seriam com um crime desse género do que com umas ofensas corporais simples usando os pés como arma de agressão". "Ninguém terá percebido que para isso ocorrer a menor teria que estar estática no chão e de pernas abertas enquanto eram desferidos seis pontapés?", refere ainda a Relação.
O acórdão dá conta ainda de que os desembargadores ouviram os depoimentos de pai e filha, concluindo que "no depoimento da menor evita-se sempre que ela seja confrontada com o real na sua própria versão dos factos" e que "a versão do arguido tinha alguma consistência" quando este refere que os problemas com a filha "surgiram porquanto tentou impor-lhe regras de conduta, quer em casa quer na escola".
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A Relação de Évora desvalorizou por completo as declarações da vítima sobre os crimes, colocando mesmo em causa que estas fossem da sua autoria exclusiva. "A menor não descreve de forma minimamente pormenorizada os factos da acusação, nem as agressões, muito menos os episódios de cariz sexual", pode-se ler na decisão. Os juízes consideraram ainda que partes das declarações da vítima "não podem ser de sua autoria natural". "Nenhum menor, face a uma questão sobre o que fez o agressor, responde que praticou o coito e ocorreu penetração vaginal", afiançam.
Tido em conta testemunho que MP desvalorizou
O testemunho da irmã do arguido sobre as marcas de agressão que a menor tinha nas pernas, segundo o qual tinham sido causados pela própria, ao arrumar móveis, e não por agressões, não mereceu crédito da parte do Ministério Público (MP), na resposta ao recurso interposto pelo arguido. Mas as declarações foram tidas como verosímeis pelos juízes desembargadores. Para o MP, a testemunha "tinha natural interesse em descredibilizar as declarações" da vítima, enquanto que, para os desembargadores, "basta pensar um pouco para perceber que muito mais verosímil é a versão da tia da menor que afirmou que tais lesões advieram do empurrar pela menor dos móveis com o corpo na arrumação do seu quarto".
Frase do acórdão
Relação de Évora
"A aceitação racionalmente acrítica e total do depoimento da menor, com a consequente exclusão de tudo o que o contradiga ou o ponha em dúvida, só pode partir de uma regra, a regra de que as vítimas de crimes sexuais e de violência doméstica nunca mentem. Algo que, fora do mundo jurídico, se propala, mas que aqui não pode ser aceite por ser a negação do processo justo e da própria natureza humana".