Mais de 40 milhões de euros em dívidas, obras de arte e centenas de outros bens arrestados e à espera de serem vendidos, além de imóveis que foram objeto de negócios suspeitos e que não se sabe a quem realmente pertencem. Um ano volvido sobre a morte de João Rendeiro, a Justiça ainda não determinou o valor definitivo nem o destino da herança do fundador do BPP, já renunciada pela viúva, Maria de Jesus Rendeiro, que continua a ser investigada por vários crimes.
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Há precisamente um ano, João Rendeiro era encontrado morto na cela que partilhava com dezenas de reclusos na prisão de Westville, na África do Sul. O ex-banqueiro de 69 anos esteve em fuga três meses e ficou cinco meses detido por se recusar a ser extraditado. Suicidou-se na madrugada de 13 de maio de 2022 e manteve a promessa de que nunca iria cumprir pena em Portugal.
A morte de Rendeiro ditou a extinção da responsabilidade criminal, mas a responsabilidade civil permanece ativa. A viúva e única herdeira renunciou à herança e, por conseguinte, a qualquer responsabilidade perante as dívidas restantes. O património que restar de Rendeiro deverá ser usado para fazer face às dívidas apuradas. Porém, um ano após a morte, o saldo ainda permanece por contabilizar.
Condenado a pagar 40 milhões a BPP, Estado e um lesado
Nos três processos em que foi condenado, João Rendeiro teria de pagar mais de 40 milhões de euros à comissão liquidatária do BPP, a um lesado e ao Estado. A este valor somam-se várias coimas aplicadas pelos reguladores bancários devido a irregularidades no BPP. Muitos milhões de euros, mais juros, que dificilmente serão cobertos pelo património arrestado ao ex-banqueiro.
No mês passado, centenas de artigos e obras de arte, bem como uma milionária mansão de 14 assoalhadas na Quinta Patino, em Cascais, continuavam à guarda do Estado. O destino mais provável deverá ser a sua venda em leilão para tentar cobrir pelo menos parte das dívidas deixadas por Rendeiro.
Justiça terá de decidir destino do património arrestado
Fonte oficial do Gabinete de Administração de Bens confirmava então à CNN que os bens à sua guarda ainda não tinham destino. Terá de ser a justiça a decidir o que fazer com o espólio e ainda não houve avanços.
Igualmente sem avanços é a situação de Maria de Jesus Rendeiro, 70 anos, parceira de João por mais de meio século. Em setembro do ano passado, a viúva abdicou da herança. Ficou sem os bens e também sem qualquer responsabilidade pelas dívidas do marido. Porém, ainda não está livre da Justiça.
Viúva é suspeita de vários crimes
Maria de Jesus é suspeita dos crimes de descaminho, desobediência, branqueamento de capitais e falsificação de documentos. No mesmo processo são arguidos o ex-motorista do casal e o pai, conhecido como "Rei dos Táxis". Até ao momento não houve qualquer acusação formal.
Após a morte do banqueiro, o Tribunal Central de Instrução Criminal levantou a prisão domiciliária que havia sido decretada a Maria de Jesus sete meses antes, na sequência da operação "D'Arte Asas". O juiz considerou que, com a morte do marido, deixou de haver perigo de fuga, mas a viúva ficou proibida de se ausentar do país e de contactar com os restantes arguidos e obrigada a apresentações periódicas junto das autoridades.
Ainda decorre a investigação ao eventual desvio e falsificação de obras de arte arrestadas ao marido em 2010 e das quais era fiel depositária. Pelo menos mais de uma dezena de bens à sua guarda terão desaparecido. Suspeita-se que algumas das que ainda se encontravam em sua casa, em Cascais, sejam falsificações.
Ex-motorista e "Rei dos Táxis" também são arguidos
São também arguidos neste processo Florêncio de Almeida, presidente da ANTRAL - Associação Nacional dos Transportes Rodoviários em Automóveis Ligeiros, e o filho, de igual nome, ex-motorista do casal Rendeiro. Em causa estará a suspeita de branqueamento de capitais através da simulação de negócios imobiliários com o "Rei dos Táxis" e o filho.
Em 2015, João Rendeiro transferiu para Florêncio (pai) a propriedade de um apartamento em Campo de Ourique, supostamente por 500 mil euros. Não há registo de qualquer movimento financeiro. Três anos depois, o pai cedeu-o ao filho que o venderia por 1,5 milhões de euros. Com o dinheiro comprou uma propriedade no Alentejo e um apartamento de luxo na Quinta Patino, em Cascais, um condomínio exclusivo onde também se localiza a vivenda do casal Rendeiro.
Comprou casa de 1,1 milhões e deu usufruto à ex-patroa
O ex-motorista terá pago 1,1 milhões de euros pelo apartamento, tendo logo cedido o mesmo em regime de usufruto por 15 anos a Maria de Jesus, onde esta residia e, inclusive, ficou em prisão domiciliária.
O Ministério Público acredita que pai e filho agiram como testas-de-ferro com o objetivo de esconder património do casal da Justiça. Ao que o JN apurou, a investigação destes indícios ainda decorre, mas ainda não foi proferida qualquer acusação.
Colapso do "Banco dos Ricos" foi há 13 anos
Em abril 2010, o colapso do banco que fundara em 1996 e a sua consequente resolução causaram prejuízos de centenas de milhões de euros e lesaram milhares de clientes. João Rendeiro foi alvo de vários processos judiciais e pedidos de indemnização civil. Em tribunal ficou provado que retirou indevidamente mais de 13 milhões de euros do BPP e mascarou as contas do banco.
O fundador do BPP foi condenado a penas de prisão efetivas em três processos diferentes: em 2018, a cinco anos e oito meses de prisão por falsidade informática e falsificação de documentos; em maio de 2021 a dez anos de prisão por fraude fiscal qualificada, abuso de confiança qualificada e branqueamento e, em setembro de 2021, a três anos e meio por burla.
Após esta última condenação, Rendeiro anunciou, a partir de Londres, onde tinha ido com conhecimento do tribunal que não voltaria a Portugal. A Justiça deu-lhe três dias para regressar. Não voltou mais.
Fuga durou apenas três meses
Ao longo dos três meses de fuga, o ex-banqueiro terá passado por vários países e até deu uma entrevista a um canal e um jornal português onde se dizia "injustiçado" e ameaçava processar o Estado em 30 milhões de euros.
Dizia que não tinha fugido que estava a exercer "um direito de resistência perante uma justiça injusta". Garantia ainda que fazia uma vida "absolutamente" normal e que só regressaria a Portugal no caso de "haver um indulto do Presidente".
Detido num hotel de luxo em Durban
Menos de três semanas depois da fatídica entrevista, a 10 de dezembro de 2021, João Rendeiro era detido num hotel de luxo em Durban, na costa leste da África do Sul. Apesar de ter feito tudo para não ser encontrado, há mais de um mês que a Polícia Judiciária o tinha localizado naquele país e há vários dias que estaria a ser vigiado pelas autoridades locais. João Rendeiro contestou o pedido de extradição para Portugal.
Rendeiro garantiu então que nunca regressaria a Portugal para cumprir pena. A sua advogada queixou-se das más condições da cadeia e de que Rendeiro estaria a ser vítima de extorsão.
Autópsias afastaram existência de crime
Esteve detido cinco meses. Foi encontrado enforcado na casa de banho da cela na madrugada de 13 de maio. Duas autópsias, uma na África do Sul e outra em Portugal, afastaram a existência de crime.
João Rendeiro, filho de um modesto sapateiro de Campo de Ourique e que conseguiu chegar a banqueiro dos ricos, morreu do outro lado do mundo, só e caído em desgraça. Optou por uma fuga final em vez de enfrentar as consequências dos seus atos.