Magistrados “patriarcais” optam pela união familiar em vez das vítimas de violência
Especialistas do Conselho da Europa no combate à violência sobre mulheres exigem mais e melhores decisões a procuradores e juízes portugueses.
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Muitos magistrados portugueses demonstram “atitudes patriarcais persistentes” que os leva a preferir a unidade da família aos direitos das mulheres vítimas de violência. Também há juízes sem “consciência do impacto” da violência doméstica nas crianças e procuradores que não são proativos na procura de prova em casos de agressões em contexto familiar. Tudo somado, a maioria dos processos de violência contra mulheres acaba sem julgamento ou com condenações a penas suspensas.
Esta é a conclusão do grupo de especialistas do Conselho da Europa (GREVIO, na sigla inglesa), que analisou o panorama português e que publicará, hoje, o relatório final. No documento, os técnicos europeus começam por referir que “Portugal fez significativos progressos na adoção de medidas para combater a violência contra as mulheres”. Alertam, no entanto, para a “tendência generalizada entre o poder judicial de atribuir grande importância à proteção da família como um todo, incluindo as famílias marcadas pela violência, em detrimento dos direitos e interesses das mulheres vítimas e dos seus filhos”.
Esta “tendência prejudicial”, dizem, “está ligada a atitudes patriarcais persistentes entre alguns membros do sistema judicial, o que tem consequências negativas para as vítimas de violência”.
Muitas penas suspensas
Numa extensa análise, após uma visita de cinco dias a Portugal, os técnicos avisam que os procuradores “têm tendência para promover a suspensão dos processos penais contra os autores dos crimes, o que resulta na ausência de condenação”. E, “quando um caso vai a julgamento, as sentenças tendem a ser demasiado brandas e frequentemente suspensas”. “Estas tendências resultam, em parte, da crença generalizada entre estes profissionais de que a unidade das famílias deve ser protegida como uma questão prioritária”, frisam.
Os números parecem dar-lhes razão. “Em 2021, foram registadas 26 520 denúncias pelas forças policiais, enquanto o Ministério Público apresentou acusações em apenas 3941 casos”, destaca um relatório, que salienta, ainda, que “o número de condenações por violência doméstica que resultam em penas de prisão efetiva está a diminuir e é inferior a 10%”.
O GREVIO vai mais longe ao referir, “com preocupação, que algumas vítimas são pressionadas a aceitar a suspensão do processo, dado que pode ser uma ferramenta eficiente para o sistema judicial dispensar um elevado número de processos sem ir a julgamento”.
O organismo europeu enfatiza que “a necessidade da formação de juízes e procuradores torna-se ainda mais evidente” porquanto há “tribunais [de família e menores] que desconhecem a existência de medidas de afastamento ou ordens de proteção emitidas” noutros processos. “A decisão predominante é a guarda partilhada entre os pais, mesmo em casos com histórico de violência. Quando são apresentados indícios de violência, os juízes argumentam que é do melhor interesse da criança manter uma relação com o progenitor agressor – chegando a considerar que esses interesses podem prevalecer sobre os possíveis riscos para a segurança da criança”.
Estigmas sobre as mulheres pesam nos tribunais
Os especialistas europeus no combate à violência doméstica não têm dúvidas que, nos tribunais portugueses, as mulheres que sofrem de violência “são retratadas como manipuladoras, superprotetoras ou ciumentas”. São, igualmente, “acusadas de instrumentalizar os filhos contra o pai (abusivo)” e, asseguram, este quadro mental acaba por influenciar “o raciocínio judicial, pareceres psicológicos e de outros peritos, e decisões judiciais em todas as instâncias”. “A relutância dos tribunais de família e menores em restringir [ao agressor] os direitos parentais em casos de violência também se deve, em parte, a esse fenómeno”, sublinham.
Por outro lado, e embora a lei permita dispensar a tentativa de conciliação nos processos de divórcio em que tenha havido violência, as vítimas, frisa o relatório, continuam a ser obrigadas a estar na presença do agressor, “em resultado da falta de coordenação e troca de informações entre os tribunais de família e o sistema de justiça penal”.
O mesmo sucede na conferência parental para definir a custódia e direitos parentais sobre as crianças envolvidas num processo de separação. “Se uma das partes, incluindo o progenitor não abusivo, não comparecer – por razões de segurança ou por receio de não poder negociar em pé de igualdade com o ex-cônjuge abusivo – o tribunal pode adiar a audiência e decidir sobre um regime temporário de custódia, e a sua ausência contará contra si, levando a uma perda (temporária) da custódia”, critica o GREVIO.
Mas os problemas não são só nos tribunais. As organizações não governamentais dedicadas a esta temática, não têm financiamento que cubra todas as despesas e permanecem afastadas do processo de decisão política. E as escolas continuam a poder escolher não lecionar, na disciplina de cidadania, matérias relacionadas com a igualdade entre mulher e homem.
Vizela
Arquivamento em prol da paz social e familiar está em análise no MP
Em fevereiro, a mulher do presidente da Câmara de Vizela, Vítor Hugo Salgado, foi ao Hospital de Guimarães. Foi-lhe diagnosticada uma fratura no nariz, entre outras lesões, e a PSP recebeu uma queixa por violência doméstica. O caso foi noticiado e o PS disse que já não apoiaria uma recandidatura autárquica de Victor Hugo Salgado, que renunciou à liderança da Distrital do PS/Braga. Mas a mulher de Salgado, já perante o Ministério Público, não quis depor. E a procuradora titular do inquérito optou pelo seu arquivamento. “Devido à inexistência de indícios do crime de violência doméstica” e “a fim de se assegurar a paz social e a tranquilidade no seio da família”, justificou. Na sexta-feira, o procurador-geral, Amadeu Guerra, avisou que o inquérito poderia ser reaberto e, ontem, o presidente do PS, Carlos César, decidiu manter a retirada de apoio a Salgado.