Médico condenado a sete anos e meio de prisão no caso da morte de recrutas dos Comandos
O Tribunal da Relação de Lisboa condenou, esta quarta-feira, a sete anos e meio de prisão o médico responsável pela equipa sanitária do curso em que morreram, em 2016, dois recrutas dos Comandos. Miguel Domingues tinha sido absolvido de todos os crimes, em janeiro de 2022, pelo Tribunal Central Criminal de Lisboa.
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Os três juízes desembargadores e um juiz militar puniram ainda um instrutor do curso com cinco anos e três meses de cadeia. Ricardo Rodrigues, primeiro-sargento, tinha sido sancionado em primeira instância com três anos de pena suspensa.
Outros cinco militares, incluindo o tenente-coronel diretor da "prova zero", Mário Maia, foram sancionados com penas suspensas até dois anos e três meses. Dois deles tinham já sido condenados, em termos similares, pelo Tribunal Central Criminal de Lisboa.
Em causa estão crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previsto no Código de Justiça de Militar, e que, no caso do capitão médico do Exército e do diretor da "prova zero" foram praticados por omissão.
Os restantes 12 militares que, em junho de 2017, tinham sido acusados pelo Ministério Público ficam, na sequência desta decisão, definitivamente absolvidos.
Hugo Abreu e Dylan Silva, ambos de 20 anos, morreram em setembro de 2016, na sequência de um "golpe de calor" sofrido durante a "prova zero" do 127.º Curso de Comandos, em Alcochete, num dia de temperaturas particularmente elevadas.
"Ignorou todos os sintomas"
No acórdão proferido esta quarta-feira, os juízes desembargadores e militar são particularmente críticos da atuação de Miguel Domingues, escusando-se, até, a aplicar a atenuação especial de pena para o médico que tinha sido requerida pelo Ministério Público, por considerar que este agira "condicionado por ordens superiores".
"A responsabilidade da avaliação dos instruendos quando chegados à tenda de posto de socorro bem como a monitorização em termos clínicos é exclusivamente sua, não havendo nada nem ninguém que possa condicionar a sua atuação enquanto garante dos tratamentos médicos adequados à tutela da saúde e da vida dos instruendos", contrapõem os magistrados, baseados no que está definido no guião da "prova zero".
Os juízes salientam que, apesar de Miguel Domingues ter então experiência em cursos anteriores dos Comandos e no INEM, "ignorou todos os sintomas da doença que viu acontecer nos formandos" e "resolveu abandonar o campo de tiro", deixando Dylan Silva e Hugo Abreu "sem apoio médico" e dando apenas ordem para que estes fossem limpos para serem assistidos no hospital. Vinte minutos depois, Hugo Abreu morreu no local.
"O que mais não falta nos hospitais são pessoas sujas, rotas, mal cheirosas e estropiadas, não sendo isso motivo de recusa de assistência clínica", atiram os magistrados, para quem o clínico, de 42 anos, exibiu, com a sua conduta "um sentimento de profundo desrespeito pelas vidas colocadas à sua guarda".
Em janeiro de 2022, o Tribunal Central Criminal de Lisboa já censurara a atuação do médico, mas argumentara que tal não correspondia ao crime que lhe tinha sido imputado - um entendimento agora contrariado pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
"Um instruendo é gente"
Esta quarta-feira, os juízes desembargadores Maria da Graça dos Santos Silva, Cristina Almeida e Sousa, Jorge Raposo e o juiz militar David José Gaspar foram igualmente duros com Ricardo Rodrigues, condenado por ter privado vários formandos de água, incluindo Hugo Abreu, em cuja boca colocou terra, quando este já estava a desfalecer e a pedir assistência.
"Um instruendo é gente e gente não se maltrata assim. Pior: a colocação de terra apanhada do chão, o que revela um efetivo [...] desprezo pela sua dignidade pessoal e, pior ainda, quando a vítima já estava a cargo da equipa sanitária, por estar exausto e desidratado, apresentando lesões neurológicas, delirante, a cuspir e babar-se", afirmam.
Já o diretor da "prova-zero", Mário Maia, foi punido por não ter adequado o esforço e a hidratação dos recrutas dos Comandos às altas temperaturas que então se faziam sentir. O tenente-coronel beneficiou, ainda assim, de uma atenuação, por ter, a determinada altura, contactado o comandante do Regimento de Comandos - Dores Meira, coronel e seu superior hierárquico - para tentar "minorar o sofrimento dos formandos" e por ter, posteriormente, interrompido, sem autorização e numa eventual infração disciplinar, a "prova-zero".
Os restantes quatro instrutores foram sancionados por terem, sem justificação, mandado Hugo Abreu e Dylan Silva rastejar sobre silvas e esbofeteado outros dois formandos.
"É certo que os Comandos se querem uma tropa de elite, diferenciada, com especiais aptidões técnicas capazes de superar os mais difíceis obstáculos. Mas isso só se consegue com pessoas vivas, de saúde, com treinos adequados, que respeitem os seus direitos mais básicos [...] ainda que dentro de um quadro previsivelmente hostil. Não esqueçamos que esta era a primeira prova do curso, cuja duração é de cerca de três meses", lembram os juízes.