Grávida de 37 semanas perdeu a criança depois de uma hora e vinte minutos à espera de assistência na urgência do Hospital da Guarda. Clínicos negaram responsabilidade.
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O juiz de instrução criminal do Tribunal da Guarda mandou para julgamento os médicos Mónica Reis e José Coelho e a enfermeira Gabriela Will, pronunciando-os por crime de ofensas à integridade física por negligência agravado. Os arguidos, que serão julgados em breve, estavam de serviço a 16 de fevereiro de 2017, quando uma grávida esperou quase hora e meia para ser observada e perdeu a bebé.
A obstetra, bem como a enfermeira, pertencem ao quadro da Unidade Local de Saúde (ULS) da Guarda e o outro clínico tem domicílio profissional em Santarém, sendo que, à data dos factos, era médico tarefeiro na instituição, à qual nunca mais voltou.
Segundo o despacho de pronúncia, Cláudia Costa, grávida de 37 semanas, deu entrada na urgência obstétrica de manhã, às 9.30 horas, assustada com uma pequena perda de sangue. De imediato, a enfermeira agora arguida efetuou o registo tocográfico e percebeu que os batimentos cardíacos do feto eram fracos. Porém, na ausência dos médicos, que entraram e saíram várias vezes do serviço, só transmitiu a informação às 10.23 horas, quando a obstetra acusada regressou. Nessa ocasião, a clínica telefonou ao colega - tinha voltado a ausentar-se para tomar o pequeno-almoço - pedindo-lhe que voltasse e que avaliasse outra grávida chegada depois de Cláudia e a aguardar na sala de espera. Minutos depois, Cláudia sentiu uma dor aguda seguida de hemorragia. Quando os dois obstetras a examinaram, o feto já não dava sinais de vida.
Urgência ignorada
Retirado do ventre da mãe ainda nesse dia, mas à tarde, o feto foi autopsiado já na presença dos inspetores da Polícia Judiciária da Guarda e o relatório preliminar indicou logo que a mulher, então com 39 anos, sofreu um descolamento da placenta. "O feto estava vivo pelas 9.50 horas do dia 16 de fevereiro de 2017, tal como é objetivado no registo tocográfico realizado naquele momento com batimentos cardíacos entre os 120 e os 100 por minuto", lê-se no relatório.
No âmbito do inquérito aberto, foi pedido um parecer adicional ao Instituto Nacional de Medicina Legal, a partir do qual o Ministério Público concluiu que a vítima, "sofreu um tempo de espera excessivo (...) sem que fosse sujeita a uma adequada monitorização e vigilância durante o tempo de espera, o que inviabilizou a realização de uma cesariana de urgência que teria salvo a vida do feto e, por essa via, a integridade física e a saúde da assistente".
Durante o debate instrutório, no ano passado, os médicos negaram que a enfermeira lhes tivesse reportado as perdas de sangue da mulher grávida e cada um deles imputou a responsabilidade ao outro pelo serviço de urgência.
Feto sem personalidade jurídica
À luz da lei, como o feto morreu dentro do ventre da mãe ainda não tinha personalidade jurídica e, como tal, não foi possível acusar os arguidos de homicídio negligente, crime que só se poderia verificar se a criança morresse após o nascimento. Nem mesmo a acusação de aborto foi opção, porque se exige uma ação dolosa e, no caso, houve omissão e negligência. O procurador decidiu imputar aos arguidos o crime de ofensas à integridade física por negligência, agravado, com o argumento que "o feto no útero materno faz parte do corpo da mãe". O juiz de instrução confirmou.
Pormenores
Primeira gravidez após tratamento
Cláudia Costa fez tratamentos de fertilidade e sempre foi acompanhada no Centro Hospitalar da Cova da Beira, mas quis fazer o parto na Guarda, de onde é natural, e na maternidade da instituição onde trabalhavam e ainda trabalham o marido e a mãe.
Gestação sem complicações
Apesar dos seus 39 anos, a mulher viveu uma gravidez de alto risco sem complicações. Em novembro de 2016 passou a ser seguida na Guarda e na véspera do incidente foi submetida a registo tocográfico que não detetou anomalias.