Os dados oficiais relativamente ao ano passado permanecem ocultos, mas médicos, enfermeiros e polícias confirmam que a violência sobre profissionais de saúde continuou a aumentar em 2024.
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Para inverter a tendência de crescimento, a PSP percorreu várias unidades de saúde para dar formação a potenciais alvos e o Parlamento alterou a lei para transformar em crime público as agressões ocorridas num hospital ou centro de saúde. Mesmo assim, todos pedem mais medidas para evitar casos como o que, na semana passada, acabou com dois enfermeiros feridos no Hospital Curry Cabral, em Lisboa.
“Mantenham sempre uma distância de segurança para o utente, para terem tempo de reagir no caso de serem atacados”. O conselho foi dado, no mês passado, pelo chefe da PSP do Porto, Carlos Soares, a uma plateia composta por médicos, enfermeiros e pessoal administrativo do Hospital Santo António, durante mais uma ação de sensibilização, no âmbito da operação “Saúde em Segurança”.
Este programa pôs polícias a falar com profissionais de saúde e o chefe Carlos Soares aproveitou para alertar, por exemplo, para a importância, nos serviços domiciliários, de ter o carro de serviço pronto a sair rapidamente de um bairro em caso de surgir um conflito. Chamou a atenção ainda para a arquitetura insegura de um gabinete clínico. “A porta devia estar sempre atrás da secretária, de forma a que o profissional de saúde possa fugir em caso de necessidade. Mas isso raramente acontece”, criticou.
Mais de 2000 episódios violentos
Os números anunciados pela PSP no início de abril dão conta de que, em 2023 e num universo de 148 mil profissionais de saúde, foram registadas “2359 situações de violência, o que corresponde a um aumento de 539 registos (mais 30%) face a 2022”. Com base no Relatório do Inquérito de Segurança 2023, a Polícia acrescenta que a pressão “psicológica continua a representar a principal tipologia de violência (62% das situações), seguindo-se a violência física (23%) e o assédio moral (11%)”.
O JN solicitou à PSP, ao Ministério da Saúde e à Direção Executiva do Sistema Nacional de Saúde a atualização da estatística com dados do ano passado. Todavia, ninguém respondeu, nem para explicar a razão para que, cinco meses após o final de aono, a informação permaneça oculta.
Certo é que, desde a semana passada, há mais um episódio violento a somar aos registados nos últimos meses. Oito pessoas, todas familiares de um doente que faleceu no serviço de Nefrologia, provocaram danos num quarto e num corredor do Hospital Curry Cabral. “Foram ameaçados e agredidos dois profissionais de saúde (enfermeiros)”, confirmou a unidade hospitalar.
Na sequência desta agressão, a Ordem dos Médicos exigiu mais medidas ao Ministério da Saúde e à Assembleia da República. "Precisamos de uma resposta clara e firme por parte das autoridades: a violência sobre os profissionais de saúde tem de ser eliminada da nossa realidade", sublinhou o bastonário Carlos Cortes.
Poucos profissionais
O presidente do Conselho Diretivo Regional Norte da Ordem dos Enfermeiros, Miguel Vasconcelos, é igualmente perentório: “há um maior grau de violência”. E, ao JN, apresenta duas justificações para o fenómeno. “O grau de iliteracia é grande, o que faz com que o utente não perceba a ação clínica. E temos um baixo número de profissionais de saúde, o que provoca atrasos no atendimento e o consequente descontentamento nas pessoas”.
Segundo Miguel Vasconcelos, nem é nos serviços de urgência dos hospitais, que lidam com episódios agudos num ambiente sempre tenso, que há mais casos de violência. “O pior acontece no internamento, onde há um número insuficiente de profissionais para responder rapidamente às necessidades, o que espoleta a violência”, explica.
Num cenário cada vez mais complexo, o diretor da Ordem dos Enfermeiros pede “polícias à porta de todos os serviços de urgência, formação aos profissionais de saúde na área da segurança e a contratação de mais pessoal” para travar mais agressões.
Agressões passaram a crime público e têm punições mais severas
Desde abril que agredir profissionais de saúde, e ainda polícias, guardas prisionais e bombeiros, é crime público. A nova lei também isenta estes trabalhadores do pagamento de custas judiciais.
Segundo o mais recente diploma, o crime de ofensa à integridade física simples contra médicos, enfermeiros e pessoal auxiliar passa a ser sancionado com uma pena entre um e quatro anos de prisão, quando, antes da alteração legislativa, não ia além dos três anos. Nos casos da agressão ser considerada qualificada a pena máxima aumenta de quatro para cinco anos de prisão.
Já as situações enquadradas no crime de resistência e coação sobre funcionário - ou seja, ocorrências em que, de acordo com o Código Penal, é usada violência para impedir que este pratique um ato médico, a pena máxima passa de cinco para oito anos de cadeia.
Os trabalhadores da área da saúde passam igualmente a integrar a lista de profissionais contra os quais a agressão é suscetível de "revelar especial censurabilidade ou perversidade" e ficam isentos de custas judiciais quando em causa estiverem ofensas sofridas no exercício de funções.
Mais severidade
“A nova lei será mais dissuasora e mais protetiva”, defende o presidente do Conselho Diretivo Regional Norte da Ordem dos Enfermeiros. Apesar da melhoria, Miguel Vasconcelos, acredita que uma legislação “ainda mais severa para o agressor” poderia ter melhores resultados. “Já houve um caso de uma agressão que terminou com uma pena suspensa e um pedido de desculpa”, exemplifica.
O bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes, assumiu posição semelhante, após as últimas agressões no Hospital Curry Cabral. “É essencial que estes comportamentos sejam condenados socialmente e combatidos através de legislação adequada e penas exemplares. Este tema fará parte das prioridades que a Ordem dos Médicos irá apresentar ao próximo titular da pasta da Saúde”, afirmou.