As queixas por ruído aumentaram com a pandemia. Os registos da PSP, da GNR e da associação ambientalista Zero dão razão à preocupação do presidente da República.
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As multas, emitidas pela PSP no primeiro confinamento, quase triplicaram e, com o agravar do número de infeções em Portugal e o retorno ao teletrabalho, voltaram a disparar no final de 2020 e em janeiro deste ano. Marcelo insiste numa resposta do Governo, mas António Costa continua sem legislar.
Entre abril de 2020 e janeiro de 2021, a PSP levantou 667 autos por ruído de vizinhança. Os números foram avançados ao JN pela força policial, que tem intervenção nos centros urbanos. São as zonas onde há maior pressão populacional e maior potencial de conflitos entre vizinhos.
Nos meses de janeiro e fevereiro de 2020, portanto antes da pandemia, a PSP levantou 36 e 35 autos, respetivamente. Em março, início do confinamento, os autos subiram para 47. E, desde então, regista-se só um mês com menos situações: 44 multas em novembro.
O mês com mais ocorrências foi abril, quando as famílias estavam fechadas em casa, muitas com pais em teletrabalho e filhos com aulas à distância. Seguem-se maio (82 autos), outubro (75) e dezembro e janeiro de 2021 (ambos com 70).
Denúncias no verão
A PSP não adianta quantas denúncias de ruído recebeu. Apenas indica as queixas que evoluíram para autos. Só nos casos em que a "pessoa responsável pelo ruído não promove a resolução em tempo" é que a PSP "procede ao levantamento de auto por contraordenação por ruído de vizinhança, independentemente de se tratar de domicílios, estabelecimentos comerciais ou estaleiros de obras", pode ler-se na resposta ao JN.
Já a GNR, que atua nas zonas mais rurais, registou 3590 denúncias de ruído no ano passado. Os meses com mais queixas foram no verão, com julho a registar 622 denúncias e agosto 607, um aumento substancial face às 58 queixas recebidas em janeiro de 2020, antes do primeiro confinamento. Os distritos com mais ocorrências foram Faro, Lisboa, Porto, Setúbal, Braga e Aveiro.
Teletrabalho continua
Desde 10 de fevereiro que o chefe de Estado tem vindo a alertar, nos sucessivos decretos, para o problema do ruído. Marcelo abordou-o pela primeira vez no decreto que sustentou o estado de emergência entre 15 de fevereiro e 1 de março. E insiste a cada renovação, incluindo no último decreto que prolonga o estado de emergência até 15 de abril.
O primeiro-ministro, António Costa, tem-se mantido impassível e nunca adiantou se ou quando iria regulamentar. Anteontem, a ministra Mariana Vieira da Silva afirmou que o Governo só regulamentará se houver necessidade.Francisco Ferreira, presidente da Zero, diz que a associação recebeu, nos últimos dois meses, "cerca de 200 queixas", quando, antes da pandemia, "eram uma ou duas por semana". Relembra que, apesar de já ter começado o desconfinamento e o regresso às aulas presenciais, o teletrabalho irá manter-se até final do ano. É uma realidade que ganhará maior relevo no futuro. Por isso, o problema continua atual e é urgente analisá-lo, encontrando um "equilíbrio" entre as diferentes necessidades.
Esqueceram-se de quem está em teletrabalho
Quando, em janeiro, as obras num prédio no Carvalhido, Porto, atingiram o pico de maior barulho, a vida de Sandra Correia, que mora ao lado, tornou-se um tormento.
A assistente técnica hospitalar acumulava o desgaste de estar em teletrabalho, em dias alternados, desde o início da pandemia. Tinha a responsabilidade de recrutar enfermeiros para auxiliar em mais uma vaga de covid, mas mal ouvia os profissionais de saúde do outro lado da linha de telefone.
As escolas dos dois filhos, de seis e de 12 anos, voltaram a encerrar e passaram a ter aulas em casa. As crianças queixavam-se de que não ouviam as professoras. O mais pequeno não aguentava os auscultadores toda a manhã. A filha mais velha chegou a ter uma "anotação de comportamento". A professora fez uma pergunta e a criança ligou o microfone e respondeu, mas a professora não ouviu por causa do barulho. A mãe teve de ligar-lhe a explicar.
Vidros até tremiam
Foi a "tempestade perfeita", diz Sandra, explicando que a demolição do interior do prédio ao lado, que provocou um "barulho ensurdecedor" semanas a fio, coincidiu com o segundo confinamento, com a família "presa" dentro do apartamento.
Sandra fechava portas e janelas para tentar minimizar o incómodo, mas a intensidade da obra era tal que até "os vidros das janelas tremiam nos caixilhos". Não raras vezes, teve de desligar o telefone por não conseguir ouvir. Tentava retomar os contactos nas pausas de almoço dos operários. Chegava ao final do dia com "metade do trabalho por fazer".
Não era a única a queixar-se no seu prédio. Uma vizinha, grávida, não conseguia descansar e um vizinho em teletrabalho e a sua filha a preparar exames também não se conseguiam concentrar.
Na Polícia, não encontrou "recetividade": "Disseram que não podiam fazer nada, que as obras eram permitidas no horário previsto na lei". No empreiteiro também não: "Disse-nos que não podia parar. Fizeram tanta legislação, mas sinto que se esqueceram de quem está em teletrabalho".
Pormenores
O que é ruído de vizinhança?
De acordo com aquele regulamento, o ruído de vizinhança é aquele que está associado ao uso habitacional e a atividades inerentes, produzidas por alguém ou por animais ou coisas à sua guarda.
Realização de obras até às 20 horas
As obras não urgentes de recuperação, de remodelação ou de conservação, realizadas no interior de habitações, de comércio ou de serviços, que constituam fonte de ruído, podem ser concretizadas em dias úteis, no período entre as 8 e as 20 horas. Não carecem de licença de ruído especial. O responsável deve afixar um aviso com as datas e a duração dos trabalhos. As empreitadas urgentes não têm estas limitações.
Proibido fazer ruído de noite
O Regulamento Geral do Ruído, publicado em 2007, refere que a Polícia pode ordenar ao produtor de ruído de vizinhança a cessação imediata da incomodidade entre as 23 e as 7 horas. Noutro período pode dar um prazo para fazer cessar o barulho que causa incómodos.
715 autos de vizinhança foram levantados pela PSP durante o ano de 2020. De fora ficam as queixas que foram resolvidas, porque, após a advertência policial, o barulho que causava incómodo cessou.
3590 denúncias foram registadas pela GNR no ano passado. A guarda fiscaliza o Regulamento Geral do Ruído, nomeadamente no que diz respeito a veículos rodoviários, alarmes e ruído de vizinhança.