Miguel Rodrigues é chefe da PSP e luta pelos direitos dos polícias como diretor do Sindicato Independente dos Agentes de Polícia há vários anos. Paralelamente, dedica-se, como professor universitário, à investigação das causas do suicídio nas forças de segurança.
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Esse trabalho deu origem ao livro "Os polícias não choram", no qual revela que, nos últimos 19 anos, 147 agentes e militares escolheram colocar fim à própria vida. Mortes que, defende, estão diretamente relacionadas com a falta de condições de trabalho na PSP e na GNR e à ausência de mecanismos de apoio a quem enfrenta depressões e outras perturbações mentais.
O número de suicídios nas forças de segurança tem vindo a aumentar?
O número de suicídios na PSP e GNR tem vindo a aumentar de forma exponencial e para comprovarmos estes dados basta compararmos os números do início da década de 2000 com a última. De 2000 até 2007, observámos 46 casos e na década seguinte até à atualidade encontrámos mais 101 casos, o que corresponde a um aumento de 120%. Entre 2000 e 2019, suicidaram-se 147 polícias - 73 da PSP e 74 da GNR - o que corresponde a uma média de oito casos anuais. Em termos efetivos, estes dados demonstram que a taxa de suicídio na PSP e GNR é de 17 por 100 mil/habitantes, quase o dobro da registada na população em geral, que se fixa nos 9,7 por 100 mil/habitantes. E em alguns dos últimos anos chega a ser mais do triplo.
Quais as razões para este aumento?
Os polícias que se encontram em serviço operacional estão expostos a situações muito mais complicadas que a restante população. A tutela das Polícias apresenta estudos, por si demandados, que concluem que estes elementos se suicidam pelas mesmas razões que um cidadão comum (problemas financeiros, familiares, sentimentais e/ou abuso de álcool e drogas). No entanto, investigações nacionais e internacionais contestam esta perspetiva, indicando-a como redutora. A literatura de referência indica que este problema não deve ser analisado de forma simplista, como estes estudos cultivaram, sustentando que a explicação para a taxa de suicídio entre polícias deve ser analisada como consequência de uma complexa interação entre fatores ocupacionais (nomeadamente as características da profissão), organizacionais, individuais e interpessoais, algo que os estudos da tutela não intentaram correlacionar.
O que vivenciam de tão diferente os polícias?
A exposições a traumas (acidentes de viação graves; cadáveres; tiroteios; homicídio ou ferimento de colegas; suicídio de colegas; crianças sexualmente abusadas ou vítimas de maus-tratos; vítimas de violência doméstica; homicídios e inúmeros outros crimes graves), o stresse e a pressão da função, o "burnout" do trabalho, o serviço noturno e por turnos, a carga horária excessiva, as baixas remunerações, as relações conflituosas com as chefias, as condições de trabalho e meios materiais inadequados e insuficientes para exercer eficazmente as suas funções e uma enorme falta de oportunidades de ascensão na carreira (classes da base e intermédia da hierarquia) são algumas das especificidades da vida dos polícias.
O sentimento de ingratidão e desvalorização profissional, o sentimento de desvalorização manifestado pela própria sociedade, o serem agredidos e injuriados de forma gratuita sem punição dos agressores, o afastamento das suas origens, da sua família associados à cultura policial nacional, apresentam-se também como um fio condutor para que esta profissão seja incontestavelmente identificada como de risco. Fatores esses que são peças de um puzzle que pode originar problemas psicossociais, nomeadamente problemas financeiros, familiares, sentimentais e de abuso de álcool/drogas, num quadro que pode evoluir para depressões e outras perturbações mentais, e culminar num fim trágico como o suicídio.
Ser polícia é um fator de risco e, apesar de muitas vezes chefias e tutela tentarem desvalorizar a questão, esta realidade está interrelacionada com a problemática do suicídio.
As forças de segurança dispõem de mecanismos de apoio a agentes e militares em dificuldades? Estes mecanismos são eficientes?
Existe um Plano de Prevenção do Suicídio nas Forças de Segurança que, no entanto, não chega como deveria aos polícias, sendo mesmo do desconhecimento da população policial em geral (comprovado por um estudo recente de duas médicas psiquiátricas). Os mecanismos de prevenção e apoio são aparentemente redutores ou insuficientes, o que é facilmente percetível pelas elevadas taxas de suicídio que continuam a ocorrer (só na PSP, de 2017 para 2018, houve um aumento de 250% de casos). A título de exemplo, há cerca de um mês, após mais um suicídio na PSP, foi relatado pela comunicação social que a linha [de telefone] de combate ao suicídio da PSP não possuía meios capazes para absorver todos as solicitações e encontrou-se temporariamente desligada.
São factos que colocam a nu uma possível inércia ou até incapacidade no tratamento desta matéria e que nos deve inquietar a todos. Estes factos são reais e deveriam servir para despertar consciências e promover uma melhoria do que possa estar desordenado ou imperfeito, em vez de se tentar "desvirtuar" a evidente ligação entre as dificuldades da profissão com as elevadas taxas de suicídio.
O que pode ser melhorado no funcionamento das forças de segurança para que a taxa de suicídio baixe?
Com bases e fontes científicas expostas na recente obra sobre a realidade da PSP e GNR, "Os polícias não choram", conseguimos observar dados que nos ajudam a perceber que há uma relação entre o elevado número de suicídios na PSP e GNR e as particularidades da função de um polícia em Portugal. Observemos estes factos: os polícias ganham 789 euros; nos últimos anos, 27 PSP e GNR foram mortos em serviço e 17 mil foram agredidos (média de um polícia agredido a cada 10 horas); 147 suicidaram-se; sofrem 31% mais acidentes em serviço que a população em geral; morrem, em média, 13 anos mais cedo do que a população em geral; não têm direito a noites, fins-de-semana, Natal, feriados ou aniversários; não têm direito a subsídio de risco e não veem reconhecido o estatuto de profissão de desgaste rápido. Se a isto juntarmos todas as condições degradantes de uma cultura policial nacional que nos leva a conhecer e a viver as entranhas da nossa sociedade estão reunidas as condições para algo correr mal.
Não sendo taxativo, e sendo cada caso um caso (certamente não poderemos estabelecer um nexo causal exclusivo e direto entre um baixo salário e uma depressão ou suicídio), acreditamos sobejamente que, melhorando estas condições, o número de suicídios nas Polícias iria diminuir drasticamente.
A problemática do suicídio entre polícias deve ser mais discutida?
Durante muitos anos, o assunto foi "declarado" tabu, não só pela comunicação social, como pela sociedade e, essencialmente, pelas instituições mais atingidas pelo problema, as Polícias. Esta posição foi recentemente alterada e a própria Organização Mundial de Saúde recomenda que se fale sobre o assunto. Falar abertamente sobre o tema possibilita a criação de estratégias de prevenção e acredita-se que consciencialização do problema possa diminuir em 10% a taxa de suicídio. E é aqui que as chefias e tutela das Polícias se devem focar: na identificação dos fatores de risco, que se encontram efetivamente correlacionados com as especificidades da função. Não devem procurar apenas "empurrar com a barriga" um problema real e atual.